
"Santa Joana do Matadouro" é um grito político, uma parábola industrial onde santidade se confunde com ingenuidade e fé com alienação
Foto: Paulo Pimenta
"Santa Joana dos Matadouros", nova criação de Bruno Martins, está em cena no Teatro Carlos Alberto, no Porto, até dia 16 de novembro.
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No palco, o matadouro de Bruno Martins, a partir de Bertolt Brecht, é mais do que um espaço físico; é o coração pulsante de um sistema que transforma corpos em mercadoria e fé em anestesia. Os atores entram a mugir, contaminados pela cadência do abate. O som do gado mistura-se com o eco metálico da percussão corporal - o trabalho como coreografia de exaustão. "Setenta mil com salários baixos!", grita o coro, como quem denuncia e reza ao mesmo tempo.
A encenação faz da brutalidade um espelho. Pierpont tem pena do boi loiro decepado, mas é a pena que serve de álibi moral para a continuidade do negócio. A sopa celestial de que se fala: "Pensai naquele que vos dá a sopa quente" é o disfarce que consola os famintos, enquanto perpetua a fome. Brecht ficaria satisfeito com esta distância crítica, com o riso que raspa a consciência.
Joana Dark surge com o seu vestido de tote bags, um símbolo de consumo convertido em fé reciclada. O seu canto messiânico, "Ó tu que sofres, não estás sozinho", ecoa sobre corpos suados e máquinas assassinas. Ela quer salvar, mas o matadouro engole até a salvação. Os grandes patrões, Mauler, Cridle, são chapéus negros que decidem o destino de quem trabalha e de quem morre. Um homem cai na máquina do toucinho, outro veste o seu casaco. A sucessão é imediata, quase natural: no matadouro, a morte é apenas uma troca de turno.
Entre infeções, banhas de cobra e sopa divina, a encenação questiona o limite da compaixão num mundo que produz sofrimento em série. "Santa Joana do Matadouro" torna-se um grito político e visceral, uma parábola industrial onde santidade se confunde com ingenuidade e fé com alienação. A peça não acaba no palco: continua nas fábricas invisíveis, nas mãos que servem a sopa, nos olhos que ainda acreditam em Deus, ou em quem pagar o salário em falta.

