Marta Soares enfiou o corpo em sambaquis, cemitérios pré-históricos, para destapar a cultura ancestral do Brasil. Mas "Vestígios", que se apresenta esta sexta-feira na Associação Cultural Rampa, no Porto, no contexto do DDD - Festival Dias da Dança, mostra também o que está tapado na cultura contemporânea.
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"Por que me soterrei? Porque é assim que eu vivo - numa impossibilidade de criar, numa invisibilidade enquanto artista. Porque no Brasil a arte não significa absolutamente nada. Eu costumo falar: até me soterrei e não aconteceu nada." Este é o lado desesperado de "Vestígios", a peça da brasileira Marta Soares que se estreia em Portugal esta sexta-feira na Associação Cultural Rampa, no Porto, no âmbito do DDD - Festival Dias da Dança.
O "desespero" surgiu quando, em conversa com o JN, aludimos à semelhança entre a descrição que Marta faz da sua coreografia - mulher soterrada num sambaqui (já explicamos o que é) - e a figura de Winnie, na peça de Samuel Beckett "Ah, os dias felizes", que se encontra enterrada pela cintura num montículo calcinado. A criadora não pensou em Beckett ao conceber "Vestígios", mas à referência logo reagiu: "Também há um desespero no meu trabalho: a condição de artista é de soterramento no Brasil, sempre foi, agora é mais extrema".
Mas há também o lado poético, simbólico e sagrado nesta peça de 2010 que se inspirou nos sambaquis. Também conhecidos como concheiros, trata-se de cemitérios pré-históricos, espalhados por vários pontos do Brasil, mas sobretudo no estado de Santa Catarina, que se formaram com areia, conchas, terra e material orgânico. Tornaram-se concreto ao longo dos séculos e podem ser "morros" ou "montanhas", entre os três e os 30 metros. Marta desenvolve: "São monumentos feitos de camadas de rituais de sepultamento, alguns têm milhares de anos. Contêm esqueletos misturados com areia e objetos pessoais, como lanças ou colares. Eram lugares sagrados, que emitiam sinais aos habitantes da época".
E como se passa de um sambaqui a um espetáculo de dança? "Quando soube da existência deles fiquei espantada: visitei um agrupamento na região de Laguna, em Santa Catarina, onde os arqueólogos fazem umas trincheiras para estudá-los. Eles não entenderam o que eu queria, me acharam uma extraterrestre, mas me deixaram entrar nas trincheiras. Passei lá umas cinco vezes: colocava-me nua, em posição fetal, com o corpo ao lado de ossos, dentes e restos de fogueiras. Pensei nos sambaquis como land art pré-histórica."
Como se materializou essa experiência em palco? "Pensei logo que não iria dançar como uma indígena. Surgiu-me a imagem do vento a descobrir um esqueleto, coisa impossível num sambaqui intacto, que é feito de material duro, até passam por cima deles para fazer motocross. Então a ideia era propor uma espécie de ritual funerário, mas aquilo na verdade é uma exumação, porque meu corpo se desvenda. Pode-se dizer que é um sepultamento em rewind." A acompanhar o ritual há projeções de vídeo que captam os sambaquis: "A par do corpo que se revela há essa paisagem dos monumentos, que emitem sinais dos antepassados às pessoas contemporâneas".
A apresentação de "Vestígios" no Porto tem particular importância para Marta: "Tentei trazer à tona o que está soterrado da cultura pré-histórica brasileira. E faz todo o sentido mostrar este trabalho no Porto. Os meus antepassados saíram daqui, ainda na época imperial. Então há essa dupla relação com a memória: trazer o passado do lugar onde vivo à região da minha ancestralidade."
"Vestígios", de Marta Soares, sexta-feira 29 e sábado 30 na Associação Cultural Rampa (Porto), às 17 horas.