"Novas gerações têm noção errada de que tudo se obtém de forma fácil"
José Carreras, um dos célebres três tenores, com Placido Domingo e Luciano Pavarotti, apresenta-se este sábado, às 21.30 horas, no Pavilhão Multiusos de Guimarães, no âmbito da Capital Europeia da Cultura. Uma das mais importantes vozes do canto lírico mundial será acompanhada pela Fundação Orquestra Estúdio.
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A vimaranense Sofia Escobar, que conquistou os palcos do West End londrino, será a convidada especial para o concerto, onde também participa a soprano Dora Rodrigues e o coro da Fundação EU-Japan, formado por vítimas do tsumani de há um ano no Japão, que pela primeira vez atua na Europa. A propósito do regresso a Portugal, o JN falou com o cantor catalão na sede da sua Fundação Contra a Leucemia, em Barcelona, Espanha.
Esta é a segunda vez que, num curto espaço de tempo, atua em Portugal. Como está a viver este regresso?
É sempre um prazer cantar no seu país. De todas as vezes, fui muito bem acolhido pelo público português. Estreei-me em Lisboa em 1984, mas, curiosamente, nunca cantei uma ópera em Portugal, embora tivesse gostado de o fazer. Mas nunca se sabe. O público português é um público entusiasta e isso, para um artista, é uma festa.
E já pode adiantar algo sobre o concerto no Pavilhão Multiusos de Guimarães?
Vou interpretar alguns temas da zarzuela, canções napolitanas, música espanhola, algumas peças do século XVIII. Vou partilhar o palco com uma jovem, a Sofia Escobar, com quem interpretarei temas do musical "O fantasma da ópera". E destaco também a presença de uma soprano portuguesa, a Dora Rodrigues, e de um coral japonês, vou cantar uma ou duas peças com eles.
Falemos um pouco da sua carreira artística. Despertou para o canto lírico quando era muito criança. O que determinou essa escolha?
Tive a sorte de, aos seis anos, ver um filme sobre Enrico Caruso, protagonizado pelo Mário Lanza. Para mim, foi uma inspiração ouvir e ver Mário Lanza representando a vida desse grande tenor napolitano. Isso estimulou-me, não só a estudar música, mas, principalmente, o canto.
Na época, deve ter sido confrontado com muitas dificuldades. Hoje, é mais fácil ser-se cantor lírico?
A situação social modificou-se, embora pareça que, nos últimos anos, estamos a regredir. Na minha geração, tínhamos de ser determinados e lutar pelo que queríamos. A geração seguinte viu tudo ser-lhe dado de um modo mais fácil. É uma geração de superprotegidos.
Quais são as qualidades essenciais para se ser um bom cantor lírico?
Há que ter talento e sorte. A profissão de cantor lírico depende também muito da disciplina. Tive a sorte de ter estado no momento certo quando escolhi esta profissão, mas acredito que o reconhecimento que tenho resulta do esforço. Infelizmente, nem sempre é assim com as novas gerações. As novas gerações têm uma noção errada de que tudo se consegue de uma formal fácil: dinheiro, fama, estatuto. Às vezes, nem sequer há rigor moral. Claro que, entre os jovens, também há gente maravilhosa que segue a ética moral.
Queria ser cantor, mas ainda chegou a frequentar um curso de Química na universidade de Barcelona...
Pode parecer descabido, mas foi isso que aconteceu. Fi-lo porque, entre as pessoas da minha geração, na altura, dizia-se que ser artista não era trabalho. Era algo que se deveria conciliar com uma profissão dita séria. A minha família tinha criado uma pequena empresa de cosmética. Pensaram que, se eu estudasse Química, poderia colaborar com eles. Mas a verdade é que nem sequer acabei o primeiro ano do curso. Eu tinha nascido para a música e para o canto.
Com o passar dos anos, nunca pensou em conciliar esse gosto com o da direção de orquestra, a exemplo do que faz Placido Domingo?
Não. Placido tem talento para isso. Eu não. Tenho bem marcado o meu território nesse aspeto. Para mim, só a ópera transmite uma série de emoções que mais nenhum outro tipo de arte é capaz de transmitir. E, presentemente, há cantores de ópera magníficos. As minhas raízes como artista são os cenários, os trajes, as maquilhagens, as luzes da ópera.
Mas já há alguns anos que não canta uma ópera...
Tive a sorte de o fazer durante mais de 30 anos. Portanto, considero-me satisfeito e afortunado. Mas ainda não foi dita a última palavra sobre este assunto. Acredito que voltarei a cantar uma ópera antes de deixar a carreira em definitivo.
Já tem algo em vista?
Neste momento, estamos a preparar uma ópera nova sobre um argumento que tem como pano de fundo a guerra civil espanhola. Esperamos poder levar este espetáculo à cena no outono de 2014.
Esse será mais um momento marcante na sua carreira?
Evidentemente que sim. Guardo memórias vivas de momentos especiais, como os da minha estreia no Teatro Scala de Milão, da minha primeira atuação com o maestro Herbert von Karajan... E preservo outros momentos que se entrelaçam entre a minha vida profissional e pessoal, como, por exemplo, o primeiro concerto dos três tenores que pude fazer depois da minha doença. Tudo isso são momentos muito emotivos.
Por falar dos três tenores, que recordações tem dessa parceria com Luciano Pavarotti e Placido Domingo?
Os três tenores foi algo que, com o tempo, se converteu num facto histórico. Foi uma experiência extraordinária, tanto no aspeto artístico como no pessoal.
Deram-se bem desde o início?
Sempre tivemos uma relação aberta. Tínhamos uma grande admiração uns pelos outros. No aspeto pessoal, dávamo-nos muito bem. Competíamos, sim, mas de uma forma saudável, dando o melhor de cada um de nós.
Isso explica o êxito que tiveram?
Creio que a nossa cumplicidade, a maneira de sentir e de transmitir a música criou uma química especial. Não havia nada artificial em nós. Tudo era espontâneo e isso agradou às pessoas. O mais importante destes concertos foi o facto de termos conseguido ganhar um tipo de público mais heterogéneo. Pessoas que, inclusivamente, não conheciam o mundo da ópera ou do bel canto e que, graças a estes espetáculos, passaram a interessar-se.
Qual é a imagem mais marcante que guarda de Luciano Pavarotti?
Ele era uma personalidade muito extrovertida e demonstrava isso até na forma de cantar. Tinha uma voz com o sol dentro. Tinha essa claridade e essa virtude extraordinárias. Era também um homem muito interessante, muito comunicativo. Muitos poderão vê-lo como histriónico, mas ele tinha uma filosofia de vida muito concreta, era um homem muito inteligente. Com ele, podia-se falar sobre as coisas mais profundas e essenciais da vida e de trivialidades como o futebol, o póquer ou de outra coisa qualquer.