No dia em que se assinalam cinco anos sobre a sua nomeação como diretor artístico do Museu da Cidade do Porto, Nuno Faria aborda, pela primeira vez desde a sua polémica saída, o trabalho desenvolvido nesse cargo, reclamando para si a autoria da maioria dos projetos em curso.
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Os quatro anos de concepção, reflexão e primeira fase de implementação do projecto do Museu da Cidade, correspondentes ao intervalo de 2019 a 2022, em que assumi funções de direção artística, e em que pude montar uma equipa altamente qualificada e diversificada, foram anos muito frutíferos, apesar das suas muitas dificuldades — não esqueçamos que acrescido ao trabalho, já de si hercúleo, de um projecto com esta ambição, atravessámos a maior pandemia mundial que o último século conheceu (a apresentação da nova modalidade do Museu da Cidade à cidade fez-se em fevereiro de 2020 e entrámos em quarentena um mês depois).
A missão, herdada em grande parte do longo trabalho e esforço desenvolvidos no consulado da Dra. Manuela Melo, que lançou o conceito de museu polinucleado, foi de actualizar, reinventar e consolidar estes mesmos desígnios, mas agora trazendo o museu para o século XXI.
Todos os gestos de intenção têm uma relação dual com a tradição, são ao mesmo tempo homenagens e desvios.
Ainda que nestes quatro anos, dois tenham sido em modalidade de emergência sanitária, foi possível executar o seguinte:
A abertura, há vários anos protelada, da primeira estação do Museu da Cidade, o Reservatório, sito no Parque da Pasteleira, um trabalho que finalmente ofereceu à cidade o seu tão merecido museu arqueológico — até hoje aberto e a funcionar nos exactos modos que eu e a minha equipa implementámos; a criação dos chamados gabinetes, espaços de exposições temporárias localizados nas duas bibliotecas públicas da cidade, na Casa do Infante, no Palacete Viscondes de Balsemão e na Casa Guerra Junqueiro. Estes gabinetes recebiam exposições que dialogavam com o estudo intenso e variado que estimulámos sobre as coleções e os espólios.
Esse estudo foi iniciado de forma sistemática e articulada pelas equipas aquando da minha chegada, pois não havia uma prática arquivística, de registo e de inventariação coerente implementada sobre as muitas, complexas e muitas vezes dispersas coleções pertencentes ao município. Exemplo da dimensão invisível mas fundamental deste trabalho museológico que estava por fazer e que iniciou com a minha equipa, foi o trabalho feito em parceria com o Museu Nacional Soares dos Reis, afim de retomarmos mão das coleções municipais aí depositadas, há muito negligenciadas pela abordagem museológica anterior à minha chegada.
A extensão do Romantismo, que propõe uma leitura do ideário romântico a partir precisamente do profundo estudo, descoberta e surpresa provocados por este trabalho sobre as coleções municipais, que atrás referi, é disso, provavelmente, o mais singular e impactante exemplo. Tal como no caso do Reservatório, esta montagem está até hoje aberta e a funcionar nos exactos modos que eu e a minha equipa implementámos.
Muitos dos projectos que agora se inauguram foram desenhados, orçamentados e aprovados, e as empreitadas lançadas, no período da minha direção. São casos disso, as novas reservas municipais no Antigo Abrigo dos Pequeninos, a recuperação da traça original do Ateliê António Carneiro, bem como a cooptação da importante Coleção Távora Sequeira Pinto para usufruto da população da cidade à responsabilidade do município, e ulterior acompanhamento da obra do futuro Museu que a receberia nas instalações do Antigo Matadouro Municipal; as negociações para instalação da Extensão da Indústria do Museu na Cidade no CACE, com todo o trabalho prévio e invisível de concepção e negociação com as entidades que habitam as instalações.
Tal era a articulação do Museu da Cidade com o universo amplo das Bibliotecas e da programação literária do município, que durante três anos fui coordenador geral de programação da Feira do Livro e foi a minha equipa quem liderou a sua implementação. Apesar das adversidades da pandemia (nos anos de 2020 e 2021) foram três anos de imenso sucesso de público.
Ainda sob a minha direção, foi lançado um amplo programa editorial, ora investigativo, ora propositivo, ora experimental, ora mais ortodoxo, que reuniu contributos de dezenas de autores, entre poetas, académicos, artistas, músicos, arquitectos, botânicos, antropólogos, historiadores, etc. São exemplo disso, o livro 1820, da autoria do historiador José Manuel Lopes Cordeiro, que recebeu o Prémio Grémio Literário 2020, e o projecto de corte enciclopédico Raiz Fasciculada, entre muitos outros.
Por último, uma das dimensões mais importantes, ainda que este trabalho seja sempre de continuidade e de sombra, a concepção e implementação do projecto de mediação e educação, também ele desenhado para um Museu à escala da cidade, indo ao encontro da especificidade, diversidade e multiplicidade de públicos, são exemplo disso programas como: o Dia do Vizinho, as Oficinas do Cuidar, as Derivas pela Cidade, a renovação dos Percursos do Romântico, entre muitos outros programas que continuam vigentes, não fora a equipa que comigo os implementou ser a equipa actual do Museu.
O Porto de hoje é uma cidade rizomática, cuja particular centralidade está precisamente na dispersão de pequenos centros por todo o território físico e intelectual.
Sonhámos e implantámos os primeiros pés de um museu cosmopolita, multidiscursivo, de proximidade, actualizado nas questões museológicas do século XXI, exigente, inclusivo, crítico de si mesmo e da ideia de cidade, e por isso mesmo arrojado. Que se quis próximo de todas as populações, nomeadamente as tão importantes comunidades de artistas e criadores que fazem a cidade.
Quanto a questões políticas, como está bem de imaginar, sou absolutamente alheio, a minha dimensão é técnica, investigativa, artística e intelectual.