Martin Scorsese, homenageado pelo Festival de Cinema de Berlim, falou à imprensa sobre a evolução da sétima arte e as suas perspetivas de futuro.
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Martin Scorsese sucedeu a Steven Spielberg como homenageado de honra da Berlinale, que lhe atribuiu um Urso de Ouro de carreira. Antes, esteve numa muito aguardada conferência de imprensa, que estava a abarrotar, mostrando que o realizador, além da enorme qualidade do seu trabalho, é ainda um dos mais populares do cinema contemporâneo.
Mas houve de tudo, no encontro de Scorsese com a imprensa. Um jovem búlgaro fez uma imitação de um diálogo de Jack Nicholson em “The Departed – Entre Inimigos”, um colega georgiano convidou-o para um copo de vinho em sua casa. E não faltou quem lhe agradecesse ser a pessoa que é hoje depois de crescer a ver os seus filmes. Scorsese, como herói popular…
Mais do que uma lição de cinema, a conferência de imprensa de Scorsese foi um encontro com os seus fãs, aproveitando estar cerca de meia hora a “conversar” não só com um dos realizadores mais talentosos e prolíferos das últimas cinco décadas como sobretudo com um grande comunicador. No entanto, confrontado com a possível morte do cinema, Scorsese foi peremptório. “O cinema não está a morrer”, afirmou. “Está apenas a transformar-se. Antes, havia apenas uma forma de cinema, o que v~iamos em grandes salas de cinema. Hoje podemos ver cinema nas salas e eu sou um acérrimo defensor da sala de cinema, mas também o podemos ver em tantos outros locais e plataformas.”
Scorsese falou ainda do seu encontro com o Papa, de um possível novo filme sobre Jesus Cristo, da sua relação com os Rolling Stones, de comida, sobretudo da receita de lasanha da mãe, dos filmes de Satyajit Ray e Akira Kurosawa que via em criança e de alguns jovens cineastas que o inspiram hoje, como Celine Song, realizadora de “Vidas Passadas”, já em exibição entre nós.
Entretanto, a Berlinale mostrou dois filmes em competição muito bem recebidos, não só pela imprensa como pelo público em geral. Dos três maiores festivais de cinema do mundo, Berlim, Cannes e Veneza, a Berlinale sempre foi o que manteve uma relação mais próxima com o público da cidade. As sessões de Cannes são quase exclusivamente para profissionais ou para um grupo exclusivo de convidados da Côte d’Azur, Veneza realiza-se na realidade na ilha do Lido, a que só se pode aceder de barco, e é em Berlim que se ode assistir a uma sessão do festival recheada de público da cidade.
A edição de 2024 concentrou na zona do festival, perto de Potsdamer Platz, apenas as sessões oficiais da competição e as sessões de imprensa, dispersando por vários pontos da cidade as sessões restantes, do Panorama ou do Forum. Se há uma perda de espírito festivaleiro, notando-se muito menos pessoas nas ruas que circundam o belo palácio do festival, na Praça Marlene Dietrich, a cidade ganha ainda mais em proximidade com o seu público.
Pelo que se soube, “Sterben”, do alemão Matthias Glasner, emocionou as plateias por onde já passou. Apesar da tradução literal nos indicar “Morrer”, o filme é afinal uma celebração da vida, mesmo que através dos seus traumas, resolvidos ou não. Ao longo de pouco mais de três horas, o realizador encena uma anti-novela que parte de um casal de idosos, em vias de nos deixarem, partindo depois para a geração seguinte. A morte como momento supremo de intimidade e de valorização da própria vida, a relação entre pais e filhos, e vice-versa, a falta de afetos e como isso pode marcar as nossas vidas, são elementos que conferem ao filme a universalidade que lhe permite dialogar como todos os públicos.
Bem diferente, mas também convincente e emotivo no seu relato, é “The Devil’s Bath”. Passado no interior da Áustria, à volta de 1750, o filme acompanha Agnes, uma jovem que casa contra a sua vontade, sente-se mal com o marido e, impedida de se suicidar, por razões religiosas, mata uma criança e entrega-se num convento, sabendo que será dai levada às autoridades e condenada à morte. Executada por decepamento, o seu sangue será bebido pela multidão que assiste em êxtase, a troco de uma simples moeda.
O que torna “The Devil’s Bath” tão inquietante, além do realismo sem concessões com que é filmado, é saber-se que a história se baseia em factos verídicos e que existem registos de cerca de quatro centenas de histórias semelhantes. O filme é dedicado a Agnes, uma dessas mulheres que deixou a vida nas terríveis circunstâncias que o filme descreve. Realizado a quatro mãos por Veronica Franz e Severin Fiala, o filme é produzido pela companhia de Ulrich Seidl, o mais conhecido cineasta austríaco do momento. Uma evocação do clima de austeridade e intolerância que o país atravessa e outras regiões da Europa atravessam no momento? A refletir.
Figura em destaque na Berlinale, Tsai Ming-Liang, nascido na Malásia mas figura de proa da geração de ouro do cinema de Tauwan, teve um filme restaurado em Berlinale Classics, “The Wayward Cloud”, orientou um debate sobre Narrativas Alternativas e mostrou o seu mais recente trabalho, “Abiding Nowhere”.
São dois percursos que por vezes se cruzam, partindo da natureza, a que regressam depois de incursões civilizacionais, os de um jovem filmado de forma naturalista, muito à maneira muito própria do realizador, e de um monge budista que, contra a aceleração do movimento à sua volta, caminha em passos muito, mas muito lentos.
Pessoas à sua volta numa gare, indiferentes à “estranheza” da sua presença ali, um jovem que passa em direção contrária em trotinete ou turistas que passam e páram para o fotografar, questiona-nos, em forma meditativa, sobre a velocidade a que vivemos no mundo de hoje. E Tsai Ming-Liang a questionar também os limites do cinema enquanto arte narrativa. Uma experiência única de cinema, entendido como forma livre de expressão.