Sob uma capa de ficção-científica, David Rubín esconde uma reflexão dura e amarga sobre o egoísmo humano.
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Terra. Futuro indefinido. Com o planeta ameaçado por um enorme asteróide, a solução possível é enviar contra ele uma nave não tripulada carregada de explosivos para o destruir. Em paralelo, começa a ser construída uma colónia lunar que possa albergar o maior número possível de habitantes - de habitantes muito ricos, como rapidamente se percebe - e assim assegurar o futuro da humanidade. Para a edificar é designado Alexander Yorba, um arquitecto de meia-idade conhecido por ter sucesso onde todos falharam e por criar projectos que ultrapassam as expectativas.
Sob esta capa de ficção-científica, "O Fogo", do galego David Rubín, com edição portuguesa da Ala dos Livros, esconde uma reflexão dura e amarga sobre a forma como tantas vezes pensamos de nós mais do que aquilo que somos e como desperdiçamos em vivências ocas o melhor dos nossos dias.
O momento de viragem na vida de Yorba surge quando lhe é diagnosticado um cancro terminal e poucos meses de vida; mais exactamente, os necessários para concluir o projecto. Afastado da mulher e da filha que ama, mas que sempre colocou atrás da carreira, dos sonhos, da vocação messiânica, o arquitecto decide deixar tudo para aproveitar com elas os dias que lhe restam. Essa opção, vai desencadear uma série de acontecimentos que o irão arruinar pessoal e profissionalmente, numa espiral decadente que Rubín traça com assumida crueza. A odisseia que Yorba enceta por diversos lugares, revendo pessoas que em tempos amou ou de quem foi próximo, assume também um carácter profundamente introspectivo, num mergulho visceral em si próprio que chega a raiar a loucura, arrastando o leitor por uma obra que questiona opções de vida e é um duro líbelo acusatório ao egoísmo que norteia a vida humana.
Rubín, com a espectacularidade que lhe é reconhecida, traça páginas fantásticas na composição e na cor, muitas vezes de vinheta única para as quais o formato generoso da edição portuguesa parece mesmo assim pequeno, num contraste com o tom derrotista que "O Fogo" assume e cujo final representa um último e violento soco no estômago já muito dorido do leitor.