<p>Depois da rotunda de Wong Wian Yai, uma como tantas outras na gigantesca Banguecoque – BKK para os íntimos –, há uma amostra de jardim. Uma sebe mal amanhada e ervas altas. No princípio da avenida. Ou no fim da linha, depende da perspectiva. Não fossem os carris, ninguém adivinharia ali uma estação. Terminal, ainda por cima. </p>
Corpo do artigo
Nas margens do apito da linha Mahachai, há uma rua e um cais escondido sob comida, animais, cheiros, tailandeses impolutos pelo turismo que fica do lado de lá da sebe. Atrás, um canal de esgotos e panelas para servir as bancas da frente. Frango em ebulição, uma esfregona negra como o óleo e os dejectos da linha, uma televisão no meio da mercearia. É o centro de BKK, recordamos. Até que, a meio da hora, a curta composição arriba, num barulho de peças soltas. Começa a viagem até Samut Songkhram, que fica a duas horas e 45 cêntimos da capital, num comboio que caberia bem no Portugal de há umas décadas.
Enfiado numa imensa T-shirt amarela, um escanzelado velhote liga o rádio de pilhas cor-de-rosa preso à vida por um elástico e sorve, alheio, a Coca-Cola servida à moda da Ásia: num saco de plástico transparente, com as asas presas em nó e uma palhinha. Um dos maquinistas descalça-se, puxa os pés sujos para o banco de madeira e adormece. E pouca mais há na carruagem. Lá fora desfilam aldeias e campos vadios, jacintos de águas e canaviais, charcos atravessados a passo, apitos que anunciam apeadeiros que são pouco mais do que um tasco e – como sempre – uma banca de plásticos coloridos. Uns 30 km depois, surge a outra ponta da linha, numa estação já mais estação. Cheira a peixe e a cadáveres de carruagens. É o mercado de Samut Sakhon. Assim mesmo. O comboio saiu de um mercado para parar num mercado, uma hora depois. Botas de pesca, peixe seco, mais um arco-íris de plásticos. A linha, essa, continua da banda de lá do rio, depois de um travessia num ferry carregado de lambretas e mulheres a dobrar sob o peso das compras. O porto é um mar de jacintos e pesqueiros de base azul, roupa estendida entre redes, pescadores em rebuliço. Salta-se do ferry para um cais vazio, uma rua sem gente – é hora de sesta – um templo onde se arrastam remoinhos de erva seca e se seca peixe, condimentado com pó. Ban Laem.
Estação de baratas e gatos tinhosos, ou cães sarnentos. E, claro, a banca de comida. Diz a lenda que ninguém nunca partiu ou chegou ali. Duas almas arrastam-se sem destino, entre a iguaria de aspecto duvidoso e o banco da estação. Até que a máquina rompe o silêncio. Num clic-clac aumentado pelo marasmo desta terra de ninguém. Mais uma hora e outros 30 km de mata a entrar pelas janelas abertas para disfarçar o abafo húmido, bananeiras, mais charcos, casas à beira-linha, simples, pobres, um entra e sai sem a composição puxar os travões até ao fim, há um horário a cumprir. Porque sim. E… o espanto. Como num estádio de futebol, uma onda, não de gente, mas de toldos, abre-se para deixar o comboio passar. Um mercado inteiro retrai-se sobre calhas, perpendiculares, e deixa os carris livres para as carruagens.
Só os carris. Fruta, legumes, peixe ficam ali, no chão, o monstro metálico a desfilar-lhes por cima. O mundo volta a fechar-se sobre a cauda da composição segundos depois, numa outra onda, e tudo volta ao equilíbrio, até os compradores deste estranho mercado, resplandecente de luz e cor, fruta alinhada ao milímetro, sem peças esmagadas. Era o último comboio do dia. À porta do chefe de estação – homem curto, óculos gigantes, o rei a e rainha nas costas, um relógio de parede de plástico cor-de-rosa – a banca e o banco da manicure voltam aos carris. A cliente não está ali pelas unhas. Baixa a cabeça e entrega-a à “esteticista”. Para catar piolhos…