Não é desconhecido o temperamento revoltoso do pintor espanhol Joan Miró. Figura incontornável do surrealismo, proclamou a vontade de assassinar a pintura. Agora, mais de 40 anos após a morte, descobriu-se o seu derradeiro atentado: Miró pintou um quadro por cima de um retrato da sua mãe. Mas porquê?
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Entre os anos 1925 e 1927, Miró dedicou-se a uma pequena pintura a óleo (49 × 60 cm), que ofereceu a um amigo promotor de arte, Joan Prats, que por sua vez o doou à Fundação Joan Miró em 1975. A passagem do tempo e a humidade não foram gentis para com a "Pintura" (nome do quadro), que revelou ter microfissuras e algumas perdas de tinta. Uma análise por raio-x determinou que haveria algo por baixo daquilo que o olho nu não via.
Segundo o jornal "The Guardian", foi Elisabet Serrat e a sua equipa de conservação e restauro da Fundação Joan Miró, em Barcelona, com o apoio de tecnologia não invasiva, que identificaram o retrato de uma mulher.
Buscas posteriores na casa de Mallorca do pintor encontraram um retrato que em tudo correspondia à pessoa que despontava por baixo de "Pintura"; era um retrato assinado por Cristòfol Montserrat Jorba, datado de 1907. Apesar de algumas diferenças entre as duas imagens, a identidade dessa figura é inegável: Dolors Ferrà i Oromí, mãe de Joan Miró.
Elisabet Serrat e Marko Daniel, presidente da Fundação, julgam que a pintura sobreposta foi um ato deliberado e uma premonição daquilo que o artista veio a fazer mais tarde, já nos anos 1950. A hipótese de a tela ter sido reutilizada porque Miró não teria telas novas onde pintar não foi considerada.
De acordo com Marko Daniel, em declarações ao jornal britânico, “é um ato de rebelião. Porém, Miró já tinha 32 anos quando se iniciou nisto, então, não pode ser um ato de rebelião de um jovem contra os pais … [mas] contra o mundo que eles representavam: a aspiração da classe média a ser ligeiramente mais chique do que realmente é”.
Serrat complementa com um ponto de vista diferente. Entende que há uma réstia de respeito naquele ato, já que cortou a tela original e manteve o rosto da mãe intacto.
O paradoxo do pintor
Miró, que nasceu em 1893 e morreu em 1983, apesar de ser pintor, vivia o seu ofício segundo um princípio paradoxal. Queria assassinar a arte que fazia, mas era através dela, e segundo as suas regras, que se expressava – da mesma forma que é necessária a gramática para alguém se exprimir verbalmente.
Destruía a própria arte como forma de se libertar de impulsos inconscientes, mas também num ato de crítica e protesto social. Golpeava a tela com uma faca, atirava-lhe tinta acrílica, petróleo, queimava com o fogo de uma tocha, voltava a aplicar tinta… com pincéis, dedos, passos. Tudo isto com o propósito de ridicularizar o comércio e quem atribui valores monetários avultados às obras de arte.
A investigação que levou a esta descoberta resultou num documentário, “El secret de Miró”, produzido por Lluís Jené e que explora as possibilidades que levaram Joan a cobrir a imagem da mãe. “El secret de Miró” estará disponível, a partir de quinta-feira, na plataforma CaixaForum+ e nos canais online da Fundação Joan Miró.
Ver Miró no Porto
O artista do surrealismo, da arte moderna e do dadaísmo, também se dedicou à ilustração de livros. “Pintura-Poesia. Livres d’artiste de Joan Miró” é uma exposição que está patente na Casa de Serralves, no Porto.
Estas raras criações demonstram a evolução de Miró enquanto artista gráfico e expõem o seu interesse pela relação da imagem com a palavra.
As obras de “Pintura-Poesia. Livres d’artiste de Joan Miró” podem ser vistas até junho de 2025.