
Abdulrazak Gurnah e Mia Couto no Festival Utopia, em Braga, moderados por Ana Daniela Soares
Foto: Carlos Carneiro
Escritor africano Abdulrazak Gurnah, estrela do festival literário Utopia, em Braga, falou de colonialismo com o autor moçambicano Mia Couto.
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Ao terceiro ano, a organização do festival literário Utopia, em Braga, concretizou o objetivo de ter um Nobel da Literatura e ontem juntou o premiado de 2021, Abdulrazak Gurnah, com Mia Couto, numa conversa descomplexada entre dois escritores africanos, um da Tanzânia e outro de Moçambique.
O público que encheu o Auditório Vita, em silêncio absoluto, esteve mais de uma hora os olhos fitados no palco.
A uma das primeiras perguntas de Ana Daniela Soares, que moderou a conversa, Abdulrazak Gurnah fez questão de corrigir a ideia de que "ganhou" o Nobel em 2021. "Não se trata de uma competição, eu não participei em nenhuma competição com ninguém. A Academia Sueca gentilmente premiou-me. Um Nobel não se trata de ganhar, não se trata de competir", disse o escritor, sem qualquer vaidade aparente.
Logo depois, Abdulrazak Gurnah garantiu que o prémio "fez diferença de várias maneiras, provavelmente todas muito boas", mas não lhe mudou o registo nem a forma de escrever, em que o tema do colonialismo está sempre muito presente.
"No que respeita à escrita, continua a mesma. Especialmente se, como no meu caso, e acho que em muitos casos, o prémio chega depois de muitos anos de trabalho. E se, depois de todos esses anos, não conseguimos desenvolver um certo tipo de confiança ou estabilidade sobre como trabalhamos, então talvez sejamos pessoas ansiosas", apontou.
"A guerra começa com a desumanização"
Mas houve algo que Abdulrazak Gurnah não negou, nem podia: o Nobel deu-lhe notoriedade, o que permite aos outros entrar na sua escrita e conhecer as histórias que estão retratadas nos livros e que fazem dele um ficcionista pós-colonial.
"O facto de as pessoas quererem saber mais sobre nós, quererem ler os nossos livros e traduzi-los, permitindo-nos também conhecer novos leitores, são algumas dessas coisas boas", afirmou.
O próprio Mia Couto admitiu que só conheceu Gurnah após o Nobel, mas que "Vidas seguintes", o livro do escritor da Tanzânia que fala do que é ser-se abalroado pelo colonialismo europeu, foi "fundamental" para escrever o romance "A cegueira do rio".
"A guerra começa antes de haver o primeiro disparo, começa com a desumanização dos outros, com a culpabilização do outro e depois leva à autorização que tenho para o eliminar", disse Mia Couto. "Por ter vivido mais de metade da minha vida em situações de guerra, interessa-me muito falar da guerra a partir de dentro", garantiu o escritor moçambicano.
O Festival Utopia 2025 prossegue em Braga até ao próximo domingo, 23 de novembro. Veja aqui outros destaques do certame.

