Maria anda na casa dos 60, segundo a própria. O rosto e as mãos, quase isentos de rugas e sem marcas de uma vida carregada de árduos trabalhos, servem de prova.
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Uma falsa prova, contudo. Quando a vergonha desvanece, torna-se possível entabular uma conversa com a mulher a quem, hoje, cumpre tomar conta, todos os dias, do único balneário público da pequena ilha do Sal, em Cabo Verde. E aí fica a saber-se que as seis décadas de vida que carrega estão repletas de histórias de dificuldades. De grandes dificuldades. De luta pela sobrevivência. Dela e da prole.
Custa-lhe recordá-las. Os tempos estão mais serenos - e lembrar o peso do passado, agora que foge ao calor tórrido da ilha recolhida na sombra que a ombreira da porta do balneário proporciona, é um exercício que compreensivelmente não lhe interessa.
Mas, sim, há algo de que não abdica falar. De Portugal. Começa pelo pior. Enche os pulmões com o tabaco meticulosamente colocado no cachimbo que nunca larga e, acto contínuo, lembra os tormentos passados por aqueles que Salazar remeteu para a "frigideira" do Tarrafal, o campo de concentração construído entre as décadas de 20 e 30 do século passado para albergar os opositores ao regime português.
(Ao seu lado, Adérito, neto, fixa-a com uns olhos verdes esbugalhados. Ele quer saber o que é a "frigideira". Ela promete explicar-lhe mais tarde que os reclusos eram sujeitos a uma desumana exposição ao sol ardente durante largas horas, até perderem o tino.)
Segue para o melhor: a esperança. A esperança dos cabo- -verdianos da pequena ilha em rumarem a Portugal.
É verdade. Natálio, segurança no hotel, não pensa noutra coisa. Os empregados do restaurante onde se come marisco ao preço da chuva não falam de outra coisa. Os filhos dos pescadores da ilha que brincam no pontão têm a mesma ambição. E João, o falador vendedor do mercado, mostra com gosto as fotos de Jorge Costa e Rui Barros (ex-jogadores do F. C. Porto) e formula um desejo: ainda há-de ver jogos de futebol em Portugal. Oxalá.