Ele era um músculo fundamental da nossa música. "O músculo mais forte do corpo humano é a língua", dizia. Ele cantava: "FMI não há truque que não lucre ao FMI/ FMI o heroico paranoico haraquiri FMI panegírico, pró-lírico daqui". Irónico, cru, endurecido, apanhado na sua própria dureza, continuava a sua récita a cantar: "Somos todos ou anticomunistas ou antifascistas, estas coisas já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para ali, as palavras é só bolas de sabão, e o Zé é que se lixa, cá o pintas azeite mexilhão".
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No fim, 1982, era noite, Teatro Aberto a abarrotar, alvoroço, um torção emocional, 2900 palavras depois cantadas em 20 minutos de rajada, ele disse: "Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto" - e a sala desabou em salvas, salpicada por lágrimas.
José Mário Branco, 77 anos de idade, 50 anos de altura numa obra monumental de inquietação, intervenção e ação, morreu anteontem de madrugada, em Lisboa, de acidente vascular cerebral.
"Foi um símbolo de resistência e de exigência", declarou o presidente da República (ler ao lado), "foi a voz ativa e o braço erguido de um Portugal melhor", disse a ministra da Cultura, "a resistência terá sempre um disco seu como banda sonora". E foi, e é, e será respeitado por todos, do fado ao hip hop e ao metal.
revolução por dentro
Nasceu no Porto a 25 de maio de 1942. Militou no PCP, foi perseguido pela polícia política da PIDE, marchou contra a guerra colonial, exilou-se 11 anos para trás de 1974 em Paris.
Chamou ao seu primeiro disco um verso de Camões ("Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", 1971), ao último "Resistir é vencer" (2004) e pelo meio virou do avesso e para sempre a música popular portuguesa. Aquele primeiro disco é há muito um marco milenar, uma revolução de som: abre com os barulhos da Gare de Austerlitz, fecha com versos de Camões, estende um manto de Kurt Weil a Jacques Brel. No disco seguinte, "Margem de certa maneira" (1973) reforça a forte componente teatral na escrita e na interpretação da sua voz de barítono nasalar, cantando ainda letras de Sérgio Godinho, poemas de O"Neill ou as "Queixa das almas jovens censuradas", de Natália Correia, uma pungente canção do património português.
Seguiram-se outras obras monumentais: "A mãe" (78), "Ser solidário" (82), que inclui a colossal torrente do "FMI" e a célebre "Inquietação". E depois: "A noite" (85), "Correspondências" (90), "Ao vivo em 97", "Canções escolhidas de 71 a 97" (99), "Resistir é vencer" (2004) e os "Inéditos de 67 a 99", derradeiro disco lançado em 2018.
Bradou ainda dos palcos do teatro, da TV, fez 15 bandas sonoras, foi ator no cinema, foi o cego do "Rio do ouro" (Paulo Rocha, 98), o Mouzinho de "Aqui d"El rei" (António-Pedro Vasconcelos, 92), a voz "Silvestre" (César Monteiro, 81).
Aos 65 anos, volta à universidade para se educar em linguística e esgrimir com os clichés - não era só na lapela a sua insurreição: "A revolução é concretíssima se começarmos por fazê-la dentro de cada um de nós".
Pessimista? Não, realista
"A minha relação com a música foi sempre uma relação de amantes. Não é uma relação de matrimónio, carimbado", dizia. "E as coisas vão acontecendo entre dois amantes. Quando se encontram é para ser bom, não é porque tem de ser".
Há um ano, na última vez que o JN o entrevistou, respondeu que não ao pessimismo. "Sou apenas pessimista no tempo da revolução ser amanhã. Pessimista no sentido de termos aqui um projeto para realizar e afinal não há projeto. Mas não é pessimismo. É só que hoje estamos confrontados com fenómenos diferentes, muito novos. Vivemos uma espécie de entropia histórica em que grandes massas se contentam com o que está, que não se questionam, que não se sentem responsáveis por coisa nenhuma", dizia. "As duas coisas mais agressivas que há no Mundo não são duas bombas atómicas, são a mediocridade e a ignorância. Não é ser pessimista, é ser realista. O futuro é o passo seguinte, não é mais que isso".
Explicou também porque deixou de atuar ao vivo: "O Mundo mudou tanto que não me sentia bem a cantar as cantigas do costume".
No último ato público no Porto, na Feira do Livro de 2018 - disse aí de si e da humildade: "O que a gente faz é uma gota no oceano do grande caminho da Humanidade" -, José Mário Branco comparou o ato de viver ao personagem mitológico de Camus, o Sísifo. Condenado a empurrar a rocha pela eternidade da montanha acima e a rocha sempre a resvalar. "Só que, ao contrário do mito grego, a nossa montanha vai crescendo sempre um bocadinho. Não é condenação ao inêxito. É condenação ao futuro", defendeu. Agora, é preciso imaginar para sempre José Mário Branco feliz. v