Respire-se fundo. Muito fundo. E, pelo espaço de um segundo, ignore-se a tensão que parece travar os movimentos. Hesitar é palavra fora do dicionário quando se trata de atravessar uma rua em Saigão. Ou em Hanói. Ou em qualquer das enlouquecidas urbes vietnamitas. E não, não há assim tantos carros. Aliás, há-os muito poucos. O que há são motinhas, milhões, um enxame ou um formigueiro, tanto faz, a conta perde-se, é impossível. Atravessar aquilo só mesmo com a bia hoi a acenar da outra banda do inferno. Inferno? Talvez não.
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Estaciona-se de um lado da D Le Loi, por exemplo, o Hotel de Ville atrás, o Teatro Municipal lá ao fundo, a França em ponto pequeno perdido no passado de uma Ho Chi Minh que já pouco tem de Saigão. Sobra o Hotel Continental dos americanos tranquilos ou os quartos de pensão em média luz dos apocalypses nows deste mundo. Enquanto se ganha coragem, a vida é isto. Procurar o Vietname da História, esse que já não é. O Tio Ho trocou as voltas a tudo. Um pé ousa descer do passeio e logo regressa a porto seguro. Ainda não é desta. Milhões. De máscaras coloridas - a gripe A, ali, não se notaria. Exportada para cá, a moda tornaria a pandemia mais bonita. Dizem que é por causa da poluição. Será. Dizem também que, no Sudeste Asiático, é por causa do Sol. Os cancros de pele, ali, também não se notariam. O branco mais alvo é a beleza extrema. Tal como o formigueiro que nos desfila pela frente. Respire-se fundo e comande-se o pé. Já está. Um pelo menos. A melhor solução seria, talvez, fechar os olhos, fechar a alma, e avançar. Não. Não. O outro pé ganha vontade própria. Mãe, tenho medo. Mãe, vou morrer. Há bia hoi da banda de lá, acorda. Cerveja de pressão a 25 cêntimos, 2,50 euros e uma bebedeira garantida com o funcionário das finanças e o professor e o puto e os velhos, em cadeiras de plástico versão criança. E da banda de lá há também a Louis Vuiton, pois então. Gente bonita. Três dois um, siga. Olhos abertos, descansados, seguros de si. Milagre. Ninguém pára, nem nós, nem o trânsito. E toda a gente passa. Como numa coreografia calculada ao milímetro, como a destreza dos grãos de areia a escorrer entre os dedos. Está quase, os passos não se detêm, não podem. É ensinamento: nunca hesitar ali a meio. E pronto. Vitória! O ballet continua a fluir-nos pelas costas, como deveria fluir a vida. Simplesmente avançando, ao sabor de uma bia.