O traço belo e agreste de Manu Larcenet sublima a violência visceral do relato.
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Se o nosso reflexo no espelho pode ser assustador, o que dizer quando descobrimos como os outros nos veem, sem os artifícios e os filtros que os nossos olhos e mente gostam de aplicar para atenuar a nossa imagem?
Podendo não parecer, é esta questão que está no cerne de "O relatório de Brodeck", o romance original de Philippe Claudel superiormente adaptado em banda desenhada por Manu Larcenet e disponibilizado em português pela Ala dos Livros, numa edição integral imaculada.
O relato tem por palco uma pequena aldeia sem nome, perdida num vale agreste e inóspito, num qualquer país desconhecido; uma localização anónima, que reforça a universalidade da história e impede que o leitor se sinta a salvo do dedo acusador que ela exibe.
Na sua base está o assassinato de um estrangeiro por todos os homens da localidade, exceto Brodeck, que por isso é empurrado para escrever um relatório dos acontecimentos que deve ser catártico e de absolvição para aqueles que, pressionados pelo desconhecido, pelos efeitos de uma guerra e pela presença do invasor, tendem a fechar-se sobre si próprios, a expurgar-se do que é diferente, estranho ou de outra origem.
Para Brodeck, que em tempos também foi estrangeiro, dividido entre o medo, a insegurança dos seus e os fantasmas da guerra que sofreu na pele e na mente, inicia-se um percurso longo e conturbado, de descobertas penosas e consequências imprevisíveis até à última página.
Metáfora sobre o racismo, a intolerância, a xenofobia e os atos que tais sentimentos desencadeiam, "O relatório de Brodeck" originou uma BD graficamente fabulosa, num registo hiper-realista, detalhado, nascido de um sublime jogo de contrastes de branco e negro, que deslumbra e choca, pela forma como o traço belo e agreste realça a violência visceral do relato. Com o desenho, Larcenet gere os tempos da história, pauta o seu ritmo, multiplica os silêncios e deixa o leitor atordoado com o relato denso, pesado, desconfortável e perturbador.
Se há obras ao lado das quais não se pode passar, esta é uma delas, pelo que está exposto e por tudo o que se esconde nas entrelinhas e no espaço em branco entre as vinhetas e que permanece no leitor para lá do fecho do livro.
O relatório de Brodeck
Manu Larcenet
Ala dos Livros