Festival Sonicblast teve casa cheia para ouvir sucessos firmados e para descobrir sonoridades inesperadas.
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André Machado, 38 anos, lembra-se do casaco de ganga com o bordado dos “SlipKnot” nas costas ser mais folgado; agora serve à justa. Alguns dos festivaleiros do Sonicblast já andam nestas andanças há alguns anos e média de idades é alta. “O rock está vivo, mas os fãs estão a ficar mais velhos”, afirma Rita, lisboeta de 42 anos que já não se lembra quantas vezes esteve no festival da Praia da Duna do Caldeirão, em Vila Praia de Âncora.
“Mas seguramente mais de cinco”, diz Rita, que acabara de levar um “fora” por pedir uma imperial, num balcão “onde só se servem finos”, explica-lhe o empregado. “Já devia ter aprendido, a culpa é minha”, ri-se. O ambiente do Sonicblast é “boa onda”, as pessoas circulam entre a praia, de um lado e o campismo de outro; o recinto fica no meio. Com sorte, é possível ver algum dos artistas no meio do público, porque este ainda não é um daqueles festivais em que as bandas chegam atuam e partem sem dizer “água vai”. Os músicos, quando podem, aproveitam os confortos da região - os “Electric Wizard”, em 2022, assentaram arraiais durante uma semana.
Na tarde de sábado, quando os “A Place to Bury Strangers” davam um espetáculo em que as guitarras se iam desintegrando com a violência do tratamento aplicado, não havia ainda muita gente em frente ao palco. Era aquela hora em que os festivaleiros andavam para cá e para lá, sem ir a lado nenhum; ou estavam a dormir para aguentar a última noite. E, contudo, quem não estava em frente ao palco, aos saltos, desperdiçou uma oportunidade rara, única. A banda de Nova Iorque já estava a arrasar, mas quando decidiu descer do palco e continuar o concerto no meio da malta, levou os espectadores ao delírio total. Parece mentira como três pessoas - Oliver Ackermann, John Fedowitz e Sandra Fedowitz - podem modular tanto ruído, com duas guitarras, uma bateria e alguns pedais.
Lendas vivas
Os históricos metaleiros “Eyehategod” garantiram a primeira multidão, antes da hora de jantar, no sábado, terceiro dia do festival, que arrancou a 10 de agosto. Os inventores do sludge estão diferentes: Mike Williams tem um novo fígado, uma experiência que deixa marcas, e o mítico baterista Joey LaCaze já não está entre nós. Os norte-americanos passaram de uma banda de indivíduos em processo de autodestruição a um conjunto de sóbrios sobreviventes. Quem gosta da música que recua até ao LP “In the Name of Suffering”, lançado em 1990, agradece.
O mundo da música está cheio de talentos que se perderam em fins trágicos. “A malta prefere continuar a ouvi-los, mesmo que falte aquela energia que, provavelmente, vinha da gasolina super que antes consumiam”, comenta Eduardo Silva, fã de metal inconfundível, vestido com uma velhinha t-shirt dos “Iron Maiden”, que já foi preta mas agora é acinzentada. “E vem desde os anos 80”.
Descobertas inesperadas
No sábado dia maior do festival, o cenário durante a tarde e noite, na Praia da Duna do Caldeirão, confirmava o que dizem aqueles que estiveram no Sonicblast ao longo dos três dias: “Um sucesso, sempre à pinha”. A organização aponta para cerca de cinco mil pessoas diariamente, ao longo dos três dias, mais um de “aquecimento”, que durou a edição de 2023.
Antes do cair da noite de sábado, a falta de assistência no recinto para assistir ao concerto memorável de “A Place to Bury Strangers” denunciava o cansaço daqueles que já iam no terceiro dia, mas, depois do pôr do sol, a casa encheu. Entre as 20 e as 21 horas, comia-se a última bifana, empurrada com um fino, numa zona de alimentação suficientemente dimensionada para ninguém se aborrecer com as filas. Alguns, já à espera dos “The Black Angels”, enquanto jantavam, podem ter perdido um excelente concerto dos algerianos “Imarhan”. À medida que os tuaregues tomavam conta da assistência, primeiro distraída, depois curiosa e, finalmente, participativa, houve quem acabasse o jantar à pressa para ver o que se passava.
Há um fundo tradicional na música deste quinteto que eles não escondem; se não fosse óbvio nas melodias, estariam lá os instrumentos de percussão e, se não bastasse, as djalabas. A música desta gente do deserto cabia num festival daquilo que chamamos música do mundo. Mas, há muito que o rock não se faz só em inglês, os riffs de guitarra estão lá e a prova é que a multidão, num concerto de rock puro e duro, aderiu à música dos “Imarhan”, que alcançaram a proeza improvável de pôr a assistência a cantar uma língua desconhecida. Foi apenas “ié-ié-ié”, mas pôs toda a gente a pular e garantiu um regresso ao palco, no final, para mais cinco minutos de guitarrada.
“The Black Angels” tomaram conta do palco
Quando os esperados “The Black Angels” tomaram conta do palco, o recinto estava lotado. Hugo Almeida mantém os olhos fechados ao longo de “The Prodigal Sun”, a faixa do primeiro álbum (Passover, 2006) que os texanos escolheram para abrir o concerto. “Esta cena é para ouvir e viajar, caso contrário não faz sentido”, diz o engenheiro informático de 47 anos, com várias tatuagens nos braços a lembrar os primeiros álbuns dos Pink Floyd - ali está a vaquinha de “Atom Heart Mother”, por exemplo -, remontando ao tempo em que a música psicadélica procurava mimetizar os efeitos mentais dos ácidos.
A banda de Austin tinha um novo LP para promover, “Wilderness of Mirrors”, lançado o ano passado, mas fizeram o favor ao público português de não se fecharem na ação comercial. Do novo trabalho tocaram “The river”, “Firely” e “Empires Falling”, mas houve tempo para velhos sucessos e Alex Maas acabou mesmo a cantar uma das faixas mais populares da banda: “Young Men Dead”. Talvez porque nem toda a assistência é capaz de viajar como Hugo Almeida e porque o tempo das drogas hipnóticas está ultrapassado, neste tipo de concertos pelo menos, o ajuntamento dispersou de imediato com o fim do último acorde esticado pelo drone de Christian Bland, sem encore.
A noite prosseguiu com “Church of Misery” a elevar o volume de um som irrepreensível, “Dozer e Luna Vieja” e terminou com “El Altar del Holocausto” e “Love Gang”, para lá das duas horas da madrugada. Foram cerca de 40 bandas, algumas óbvias, outras improváveis, num festival onde se ouve falar quase tanto espanhol como português, mas em que também era possível encontrar islandeses, italianos e americanos.