O encenador que um dia nos ensinou de cor um verso inteiro de Shakespeare, abre hoje o festival de Avignon, triplo jackpot com que é difícil não nos comovermos: é o primeiro português a abrir o festival francês em 75 anos, fá-lo com a lenda Isabelle Huppert ao centro e entra já coroado como futuro diretor. Vénia.
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"Até hoje vivi mais das possibilidades do que das certezas, das esperanças mais do que das decisões. E agora que decidir é irremediável e o tempo para mim se faz lugar de angústia mais do que de redenção, invejo Moisés que tendo vivido o tempo da promessa, morreu antes de chegar à terra prometida."
Daniel Faria (1971-1999), que escreveu poesia talvez como ninguém naquela idade em Portugal, com aquele impacto, teria completado este ano, em abril, 50 anos. Pouco depois de nos ter sido subtraído - estava recolhido no mosteiro de Singerverga, em Santo Tirso, quando aquilo que parecia ser apenas um pequeno acidente doméstico acabou por retirar-lhe a vida - foram encontradas catorze páginas A4, algumas em branco, sem texto atribuído, apenas numeradas. Eram o embrião de "Sétimo Dia", o livro inédito que acaba de sair e que constitui, se necessário fosse, a consagração de um homem raríssimo, apaixonado pelo texto bíblico, que aos 28 anos estava já, como alguém então disse, "maduro", pronto para partir.
A presente obra, sucinta e inacabada, apresenta cinco homens (sete menos dois) que, como nota o editor, "coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana a partir da qual cana um se foi fazendo lugar." É um livro extraordinário de alguém que subiu ao cimo dos poemas e dali viu o mundo todo.
A propósito de poesia, regressa este mês à Reitoria da Universidade do Porto, o projeto "Ouvir, 59 minutos de imersão poética". Nos dias 8 (já esta quinta-feira) e 22, às 21 horas, o poeta, ensaísta e pintor Luís Adriano Carlos (n. 1959) e o jovem poeta Emanuel Madalena (n. 1986), que se estreou recentemente na coleção "elogio da sombra" coordenada por valter hugo mãe com "Sob a forma de silêncio", vão conversar com a vice-reitora Fátima Vieira e convidar o público a mergulhar nos seus versos.
Luís Adriano Carlos também integra a preciosa coleção "elogio da sombra" com "Torpor", onde se encontram coisas assim: "Triste é perder o espanto e o recanto. / Essa perdição esvaziou-me o pensamento, / e nada mais lamento além do coração cheio de ardor e conceito / que me prensou o peito."
No teatro, o nosso coração palpita esta segunda-feira por Tiago Rodrigues, o diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II que será em 2022 o diretor do Festival Internacional de Teatro de Avignon e que esta segunda-feira, nesse mesmo festival (que é só um dos mais importantes do mundo desde que foi criado, em 1947) estreia "O Gingal" de Tchekhov com nada menos do que Isabelle Huppert. São muitas vénias simultâneas para fazer a um só encenador e dramaturgo, ele que nos ensinou de cor, a tantos, um verso inteiro de Shakespeare, na mais sublime das peças - "By Heart":
"Quando em meu mudo e doce pensamento chamo à lembrança as coisas que passaram choro o que em vão busquei e me sustento gastando o tempo em penas que ficaram. E afago os olhos (pouco afins ao pranto) por amigos que a morte em treva esconde e choro a dor de amar cerrada há tanto e a visão que se foi e não responde. E então me enlutam lutos já passados, me falam desventura e desventura, lamentos tristemente lamentados. Pago o que já paguei e com usura. Mas basta em ti pensar, amigo, e assim têm cura as perdas e as tristezas fim."
Por fim, uma pequena grande pérola: "The Unreal Story of Lou Reed", a história irreal de Lou Reed narrada pelo poeta de Marselha Fred Nevché, um maravilhoso projeto poético sonoro que acaba de chegar ao mercado e que talvez um dia possamos ver em palco.