Christian Serge Gustave Godard morreu na segunda-feira. O anúncio foi feito pela família que, em comunicado, referiu que o argumentista e desenhador de banda desenhada "lutou corajosamente durante mais de um ano contra o cancro e adormeceu para sempre, na sua casa em Paris, perto da família, aos 92 anos".
Corpo do artigo
Mas com o conforto de acreditar que "se juntou aos seus amigos de longa data no paraíso dos autores, como Greg, Tabary, Gotlib, Moebius, Corteggiani, que tanto sentiram a sua falta..."
Christian Godard estreou-se na banda desenhada logo no início da década de 1950, com o psudónimo de Ème, tendo publicado em diversas revistas da época. Numa carreira que abrangeu "mais de 70 anos de publicações na imprensa e no mercado editorial", passou por todos os grandes títulos infanto-juvenis francófonos: "Vaillant/Pif", "Pilote", "Tintin", "Spirou", "Circus", "Lanfeust", "Vécu" e tantas outras.
Já em nome próprio, para além de desenhador de estilo caricatural, revelar-se-ia igualmente um argumentista multi-facetado, capaz de alternar entre géneros e estilos sem dificuldade. Entre as suas criações, contam-se "Norbert & Kari" (a solo) e "A Selva em festa" (com Mic Delinx), exemplos de um humor socialmente cáustico, "Os dossiers do Arcanjo" (com Clavé), um policial com um toque de fantástico, e "O Vagabundo dos Limbos" (com Ribera), uma série de ficção-científica que questiona as origens do universo e o papel das religiões e confronta o mundo dos sonhos com a vida real, abordando questões psico-analíticas e os mitos fundadores da humanidade, apesar de decorrer num universo paralelo ao nosso.
Presença regular nas páginas da versão portuguesa da revista "Tintin", Godard teve álbuns daquelas séries publicados em português, embora nenhuma de forma completa, pela Arcádia, Bertrand e Meribérica, com destaque para "O Vagabundo dos Limbos", de que foram publicados metade dos 31 álbuns assinados pela dupla autoral.
No entanto, foi com Martin Milan, que Godard se afirmou com um dos grandes autores da sua época. Série pessoal, que combina nostalgia, ternura, um humor triste e um falso desinteresse pelos outros, tem como protagonista o aviador presente no título.
Piloto por conta própria, Martin Milan comanda o "Velho Pelicano", um avião antigo e de carácter difícil, que solta peças por todos os lados, literalmente. Com Martin Milan,
embora o piloto o negue, Godard contou algumas das histórias mais tocantes e sensíveis que a banda desenhada humorística conheceu. Entre elas contam-se os três álbuns que a Livraria Bertrand editou na década de 1970, a saber: "Os vagabundos da Selva", sobre um pai e um filho que o acaso separou em plena selva amazónica e a luta de um e outro por se reencontrarem; "O emir dos 7 beduínos" sobre coragem e fidelidade, tendo por pano de fundo um trono a herdar; e acima de todos "Uma agonia de mil anos", uma pequena obra-prima em que o medo natural da velhice e da morte é abordado com enorme sensibilidade sob a capa de um humor a um tempo negro e terno.
Dotado de uma energia inesgotável, Godard abraçou projectos atrás de projectos: criou a sua própria editora, a Vaisseau d'Argent, escreveu romances policiais, abordou temas como Átila ou o Dia D, assinou diversos Guias em BD, tendo a sua assinatura em mais de 230 álbuns, romances, peças de teatro, sketches e guiões para televisão.
Ainda segundo o comunicado familiar, assinado pela sua esposa, Elisabeth, "até ao fim continuou a criar, desenhar, escrever e inventar novos projetos. E depois, tal como Martin Milan, escapou sem avisar." e conclui com o humor que Godard tanto cultivou: "Ele não gostava mesmo de salamaleques".