Quando o som é uma experiência e no palco de uma peça de dança vemos corpos cantantes em homenagem à padroeira dos músicos, a expectativa eleva-se.
Corpo do artigo
Hark!, apresentado via streaming no festival Dias da Dança, homenageia Cecília de Roma, mártir que virou santa e serve de inspiração para uma ode ao som onde se veem várias formas de manipular o que ouvimos, numa criação sublime de Luísa Saraiva e Senem Gökçe Ogultekin.
A primeira forma de perceber a importância do som é através da falta que sentimos dele. O quarteto de intérpretes mostra-o na primeira parte da peça com uma dança debaixo de um silêncio mórbido apenas irrompido pelo barulho de um pé descalço no chão, um calcanhar deslizante ou um gemido ténue. Esta cena dá lugar a um coro de música sacra inusitado onde as bocas dos intérpretes estão coladas aos corpos uns dos outros. Há sons e ecos reverberados que acentuam a carga dramática antes de Luísa Saraiva aparecer com todo o esplendor.
Temos de falar dela. A portuense já tinha mostrado que é uma brilhante intérprete, mas Hark! releva todas as suas capacidades vocais e interpretativas. Há claras vantagens em se ser intérprete e criadora ao mesmo tempo quando se conhecem as próprias potencialidades. A segunda parte de Hark! começa com um solo dela, primeiro em silêncio, depois acompanhada pelo trio de cordas. É o corpo de Luísa que arrasta cada nota, ora leve, ora pesado, servindo de fio condutor para a composição musical. Afinal, não há som sem movimento.
Se havia qualquer dúvida da capacidade de interpretação da portuense ao nível vocal, ela fica dissipada na terceira parte da peça, em que se junta a Senem Gökçe Ogultekin e, juntas, de pernas para o ar, encarnam um dueto de sopranos que canta de forma maravilhosa "Hark! Hark! Each Tree", tema de "Heil! Bright Cecilia", a ode ao dia de Santa Cecília composta por Henry Purcell a partir do libreto de Nicholas Brady.
Toda a peça, aliás, abarca claras referências religiosas tendo aquela santa como pano de fundo. Também temos de falar dela. Cecília de Roma é padroeira dos músicos e da música sacra que levou até ao fim o voto de castidade, mesmo após o casamento encomendado, e por cumpri-lo foi condenada à morte por decapitação. Três golpes vibrou o algoz sem conseguir separar a cabeça do tronco, Cecília caiu ferida e durante três dias cantou a Deus até morrer.
À medida que Hark! avança, são cada vez mais claras as referências religiosas. Num diálogo na quarta parte chegam a contar-se histórias de milagres ocorridos após as preces a santos diversos que terão conseguido corrigir, por exemplo, uma perna que nasceu mais curta que a outra.
Enquanto tudo isto acontece, dez pessoas estão a ver tudo no centro do palco. São do público e fazem com que a experiência sonora seja ainda mais imersiva pois o som rodeia-os e quase que reflete neles para se emancipar ou repetir. Este fenómeno é mais visível no final - e que final - quando o tema homónimo da composição "Heil! Bright Cecilia" é ecoado pelo quarteto de intérpretes de forma repetitiva, quase como um chamamento, ou talvez só uma contemplação. "Salvé! Brilhante Cecília, salvé! Enche cada coração com o teu amor e a tua arte celestial".
Esta imperdível hora de ritual de manipulação do som e do movimento está disponível até às 23.59 horas desta quinta-feira, em casa (transmissão online), com o preço do bilhete na BOL por 3,50 euros.