Em Algés, não houve David Byrne e “Burning down the house” em palco, como em Nova Iorque há poucos dias; mas houve um concerto que é uma lição bem estudada, ainda que com inegável talento e brilho, sobre como conduzir uma multidão.
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Maria, de Lisboa, 12 anos, contava as horas, os dias: não conseguiu bilhete para os dois concertos de Olivia Rodrigo na Meo Arena do ano passado, este ano foi a tempo (apesar de as entradas para o NOS Alive também terem esgotado) e passou os últimos tempos numa ansiedade crescente – “ansiedade da feliz”, frisava ao JN aquela que todos, ou muitos, já tivemos: o momento irrepetível em que vamos encontrar em palco, pela primeira vez, o ou a artista que há anos ou décadas admiramos. Cujas canções conhecemos, todas as letras, todas as nuances de voz e melodia, de quem sabemos a idade, a história, as noticias – agora já não se espera por revistas mensais para ter posters ou novidades, não é preciso, elas chegam constantemente pelas redes, alimentando uma ilusionada ligação.
Olivia Rodrigo é uma dessas artistas: das que marcam a infância, adolescência, juventude e, porque não, idade adulta, de pessoas em todo o mundo, por ter aquela combinação rara de elementos – as músicas bem pensadas e marcantes, as letras, a estética, a personalidade, as causas, a ligação com os fãs – que atraem multidões. No primeiro dia do Alive 2025, esgotado muito em parte pela norte-americana – embora Benson Boone e Noah Kahan tenham atraído também público, como ficou aliás comprovado nos seus concertos – a cantora voltou a mostrar, como o fizera há um ano em Lisboa, e como tem feito em tour pelo mundo com críticas sempre positivas, porque é este fenómeno, que envolve t-shirts, acessórios, muito lilás, muitos “reels”, mas sobretudo uma linguagem musical comum que une públicos sem fronteiras.
Em palco, pelas 23.20 horas, “We got the beat” das Go-Go's a tocar, vestida de mini-saia, botas altas punk, top de cabedal, Olivia entrou com "Obsessed", faixa bónus da edição deluxe do segundo disco,
“Guts”: um tema marcadamente rock, as letras sobre uma paixão obsessiva, aparentemente por uma rapariga. A ladear, uma banda só feminina ou de músicos não binários, que a tem acompanhado em todas as digressões: primeiro de salas, depois arenas e agora festivais, nestes poucos mais de três anos em que a sua fama cresceu à escala mundial.
Em Olivia, tudo o já descrito ganha uma outra força por estes seus muitos lados: o lado rock, a assumida apetência para incluir no seu som (e banda, e estética) elementos mais próximos do rock alternativo e até punk do que é habitual nas artistas pop, a versatilidade musical que claramente nela vive – já se declarou fã dos projetos riot grrrl, teve num mês, em palco, artistas como David Byrne dos Talking Heads, Robert Smith dos The Cure, e Ed Sheeran; em Dublin, há semanas, fez uma cover de “I love you” dos irlandeses Fontaines D.C, nome maior da nova vaga pós-punk mundial que diz adorar.
E há também a sua ligação e apoio pela diversidade, inclusão de género e comunidade LGBTQ+, enquanto é também defensora das mulheres e um ícone do novo girl power, ou poder na feminilidade. As letras são muito sobre amor e desamor mas são também sobre dores de crescimento, abarcam, com paradoxal simplicidade, as complexidades da adolescência e juventude modernas: redes sociais, saúde mental, aceitação, ansiedade, desgostos, pressão de pares, estão lá.
“Ballad of a homeschooled girl”, segundo tema a ser ouvido pelos mais de 50 mil fãs do Nos Alive, é disso prova: fala sobre a sensação constante de estar aquém das expetativas da sociedade, a impressão delas serem defraudadas a cada saída à rua, que o refrão canta.
“Obrigada por estarem aqui, obrigada por estes cartazes” gritava depois do segundo tema. “Adoro-vos tanto, estou tão feliz de estar aqui” dizia, lembrando como há um ano conheceu Lisboa e foi à praia, comeu pastéis de nata “e se me lembro bem, vocês cantam muito alto”, disse ao público. Do seu lado, o som pareceu demorar a entrar no ponto; a afinação, ou a munição, também. A partir daí tudo se acertou e veio a enxurrada de êxitos: primeiro “Vampire”, single do 2.º álbum de Rodrigo, “Guts” trabalho de 2023 que consolidou a sua fama e sobre o qual disse ter “crescido 10 anos", entre os 18 e os 20, na composição e gravação.
“Drivers license” do disco de estreia “Sour”, ecoou depois no Alive, o tema que deu a conhecer Olivia ao mundo, até hoje o que superou mais rapidamente os 100 milhões de downloads no Spotify; no recinto, muitas pessoas a cantar com uma paixão e ganas como se as dores da música fossem suas, ou porque de alguma maneira são.
Ainda ao piano, “Traitor”, outro tema de desamor, entoado a dezenas de milhares de vozes, muitas femininas mas não só, e há filhas e filhos, e mães e pais a cantar, de verdade, prova que quando uma música se torna na banda sonora da vida dos filhos, também se torna na dos pais e dos anos formativos que não voltam.
Segue-se “Bad idea right?”, outro tema com uma forte batida e riffs rock, e depois “Love is embarrassing”, “Pretty isn't pretty”, “Happier”, e antes de “Enough for you”, endereçou novamente a audiência: sobre como quando a escreveu estava muito infeliz, “uma adolescente de coração partido”, a pensar que nunca iria passar, a mãe a garantir que sim. “E agora é das minhas preferidas porque ela tinha razão, tudo passa”, remata.
“So american”, “Jealousy” com breve passagem pelas filas da frente – aparentemente encurtada tal a agitação dos fás –, “Favorite crime” e “Dejá vu”: tudo êxitos, todos cantados a milhares de vozes, e um “Obrigada Lisboa, adoro-vos”, levaram o concerto para encore, preenchido com o seu lado mais rock: “Brutal”, “All-american bitch”, “Good 4 u” e “Get him back!”, público sempre a entrar pontualmente nas palmas, nos coros, nos saltos, em tudo o que a cantora pedia, sendo impressionante como uma jovem de 22 anos domina o palco e a multidão. À despedida, confettis, agradecimentos e “I appreciate you”, frase cada vez mais usada pelas bandas – de tarde, sobejamente repetida por Artemas – que é um mais do que adoro-vos mas um “dou-vos valor” ou “sou grata por vocês”; um nível mais profundo de reconhecimento e maneira mais bonita de retribuir um público que contou horas, dias, meses, para a ouvir.