Dimitris Papaioannou esteve no Teatro Rivoli, com três récitas completamente esgotadas de "Ink", o seu novo trabalho. Uma criação fenomenalmente perturbadora.
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Há espetáculos que nos assombram a vida toda e o grego Dimitris Papaioannou tem essa capacidade. O bailarino, coreógrafo e encenador grego de 59 anos – que aos 34 anos dirigiu a cerimónia de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2001 – é conhecido por criar obras num espaço onírico único que, além de efeitos visuais sublimes, mergulham de cabeça no lado humano obscuro.
Há coisas inexplicáveis nas artes performativas e que só ganham sentido na mente do recetor, mesmo que no momento da sua criação sejam apenas vagas memórias. Quando partiu para "Ink", Papaioannou tinha apenas a imagem recorrente dos pescadores na Grécia a baterem com os polvos contra as rochas, para ficarem mais tenros. A imagem, como contou em entrevista ao JN, era muito "sexual, visceral e violenta". E são esses mesmos três adjetivos que se podem usar na performance "Ink".
Antes do confinamento, o coreógrafo estava a trabalhar numa nova produção com artistas internacionais, que deveria estrear em maio de 2020 no Onassis Stegi, em Atenas, mas devido ao confinamento a estreia teve de ser remarcada. Decidiu então convocar o bailarino Suka Horn para um novo processo, que começou com a montagem de aspersores de água ligados no estúdio.
O encenador torna-se então objeto de representação da sua ideia e sujeita-se como um pintor, obedecendo a formas plásticas e pictóricas, luzes e sombras em sentido literal e metafórico de alguém que tem uma profunda consciência teatral.
O fluxo da água é constante em palco, o cenário é gigantesco, coberto a plástico negro, escuro, estranho e lunar, e são sublimes - sublimes e aterradoras - as imagens criadas quando uma criatura emerge do chão a nadar. A linguagem é de terror e os sons da água são aproveitados ao máximo, apenas algumas vezes intercortados por músicas que saem de um pequeno gira-discos, em cena.
Papaioannou usa o princípio primordial para propor questões de identidade de género, uma relação umbilical entre pai e filho e o desejo potencial de maternidade. Se por um lado é capaz de amamentar a criatura, assustadoramente parecida com um recém-nascido com tentáculos de polvo, de seguida é capaz de se alimentar do seu cérebro, numa proposta a roçar os limites do gore. Assim como os peixes e os polvos que dão os últimos sobressaltos, como quem implora por um golpe de misericórdia, apelando ao lado empático do público que roga que os mate ou salve de uma vez.
A atmosfera preta e cinzenta numa referência a Tarkovski, com anjos e demónios, mitologia e etnografia grega. Que relação existe entre estes dois seres, o homem e a criatura, porque há sempre um dominado e outro dominador? Seremos todos uma espécie de domadores de circo dos nossos demónios? E lutamos para os mantermos satisfeitos, saciados e especialmente arrumados na penumbra para que não nos possam perturbar.
Desde "The great tamer" que Papaioannou tem sido uma presença regular nos teatros portugueses, esperamos que regresse em breve para nos voltar a inquietar.