
Jonas Crow, cangalheiro a domicílio, faz citações enviesadas de um evangelho muito próprio e pontua brilhantemente o humor negro do livro
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Em "Undertaker", Xavier Dorison e Ralph Meyer espelham num western notável o pior das sociedades de todos os tempos. É um álbum de BD altamente recomendável.
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Os tempos mudam (dizem alguns...), a tecnologia atinge um nível que há poucos anos era inimaginável, assistimos a avanços em diversas áreas mas... o ser humano continua igual. Fanatismo religioso (e político), intolerância, ignorância, desrespeito pela opinião dos outros são temas atuais que, no entanto, não diferem assim tanto dos de há 100 ou 200 anos.
É o que depreendemos da muito aconselhável leitura de "Undertaker 8 - O mundo segundo Oz", edição que fecha o quarto díptico de um dos melhores westerns que a BD conheceu.
É uma obra de ficção, claro, em que possivelmente os autores espelham alguns dos seus receios em relação ao nosso presente, mas a verdade é que figuras como a irmã Oz, pregadora da pureza e da palavra de Deus - do Deus como ela o vê e cuja vontade interpreta a seu bel-prazer - têm lugar tanto há dois séculos como hoje. Infelizmente. Em seu redor, os lacaios lambe-botas do costume, interessados em pão e circo, em dinheiro e poder... ou em tentar esconder os seus próprios podres.
Com esta base, "O mundo segundo Oz" fala-nos de uma gravidez fruto de violação que alguém quer interromper, de amores desencontrados que os protagonistas tentam negar, de segredos esconsos que a prepotência revela, de uma sociedade americana que, então como hoje, surge profundamente dividida porque ainda a lamber as feridas profundas da guerra civil.
O protagonista continua a ser Jonas Crow, cangalheiro a domicílio, cujo uso profuso de citações enviesadas de um evangelho muito próprio pontua brilhantemente o humor negro que perpassa por toda a série - e que é um dos seus pontos distintivos. A par dele, o argumentista Xavier Dorison assume um tom claramente cínico e descrente da condição humana, que eleva um "simples" western para outro nível de leitura.
Graficamente, o desenhador Ralph Meyer continua a brilhar intensamente, com um traço realista extremamente dinâmico e uma composição de página livre e multifacetada com que marca o ritmo narrativo que raramente tem momentos de acalmia.
Esta parceria continua a desenvolver a série e as suas personagens, tornando-as consistentes, credíveis e muito interessantes, num tempo em que a miséria, o ódio e a vingança imperavam. Como hoje.
"Undertaker 8 - O mundo segundo Oz"
Xavier Dorison e Ralph Meyer
Ala dos Livros, 64 páginas, 19,95€

