A escritora cubana Karla Suárez continua a contar a história do seu país nas últimas décadas. No romance "Um lugar chamado Angola" recorda os milhares de compatriotas que lutaram no continente africano. "A literatura também cicatriza feridas", afirmou ao JN.
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A escritora cubana Karla Suárez cresceu com Angola no ouvido. Não foi caso único. Para quem cumpriu a infância na década de 70 em Cuba, o remoto país africano era tema obrigatório nas conversas. Afinal, 350 mil soldados cubanos combateram em Angola, por ordem de Fidel Castro, participando ao lado das forças do MPLA.
Mas, quando o último soldado cubano abandonou Angola, em 1991, um manto de silêncio caiu sobre o assunto. "Foi como se nunca tivesse existido", relembra a autora de "A viajante", que até compreende essa atitude, pois "a prioridade passou a ser a sobrevivência".
A "vontade de reacender o debate sobre o assunto" foi uma das razões por que nasceu "Um lugar chamado Angola", o quarto romance de Karla Suárez, protagonizado por um rapaz que, ao perder o pai em Angola, acaba por tornar-se num não desejado "filho de um herói".
"Nada mais foi igual a partir daí. Ele só queria uma vida normal, mas a guerra negou-lhe essa possibilidade", enfatiza a autora, desde sempre apaixonada por figuras na sombra: "Podem não aparecer nos livros de História, mas são muitas vezes os seres mais interessantes".
Com "Um lugar chamado Angola" - o original em castelhano intitula-se "O lugar do herói", mas a escritora diz ter gostado tanto do título em português que está a pensar adotá-lo para qualquer futura edição -, Karla Suárez acredita ter cumprido o seu papel enquanto cidadã, ao escrever o primeiro romance sobre este tema. "A literatura também pode ajudar a cicatrizar feridas", assume, referindo que o livro é também "uma tentativa de resgate de um tempo hoje quase esquecido".
Otimista nata, não tem tempo para grandes lamentos. É com entusiasmo que fala sobre os novos tempos que Cuba vive, como a reconstrução "belíssima" que está a ser feita em Havana Velha, cada vez com mais turistas. Faz questão de ir ao país natal pelo menos uma vez por ano e passar uma temporada larga. A mudança é audível. No sentido literal do termo. "As pessoas já não falam baixinho como dantes", atira.
Nem todas as mudanças são positivas, todavia. De elementos determinantes, a cultura e a educação têm perdido importância, substituídas pelas ambições materiais. "Fala-se mais de dinheiro", aponta. Por outro lado, a burocracia continua, em larga medida, intocável, pelo que "são precisos dois ou três dias para resolver situações insignificantes". É como se subsistissem dois países, da mesma maneira que continua a haver duas moedas. "Uma parte está a evoluir muito rapidamente e a outra quase não tem sofrido alterações".
De cada vez que regressa a Havana, "a minha cidade", experimenta um corropio de emoções. "O coração bate sempre muito, por emoção ou raiva", graceja.
Para trás ficaram os "anos terríveis" do início dos anos 90, quando a ausência de bens alimentares atingiu o patamar mínimo de sobrevivência. Foi esse cenário de fome generalizada que inspirou "Havana ano zero", romance baseado nas experiências que viveu e dos que a rodeavam. À distância destes anos todos, recorda esse período como "humilhante para todos". "Foi como se tivessem fechado o país, mas com os cidadãos lá dentro", lamenta.
Todas as mudanças operadas nos últimos anos podem ser colocadas em causa se o novo presidente norte-americano reverter todas as medidas de aproximação feitas pelo seu antecessor, Barack Obama. Um cenário que diz temer, já que "de Donald Trump não se pode esperar nada de bom".
A viver em Portugal há sete anos, Karla Suárez é uma mulher adaptada ao país, que aprecia pela comida, suavidade do clima e pelas pessoas. "Lisboa é uma cidade doce. Deixa-se viver", garante, sorridente, ao mesmo tempo que confessa apreciar o ritmo de vida dos portugueses, "devagarinho, parecido com Havana".