A última noite do MEO Kalorama foi marcada pelas atuações de Nick Cave e de Peaches. O primeiro arrepiou, a segunda arrebentou. No final, os Disclosure transformaram o relvado da Bela Vista numa enorme e animada pista de dança. Pelos três dias do festival passaram 112 mil pessoas. Para o ano há mais.
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Nick Cave esteve em palco 2 horas e 20 minutos. Quando entrou, ainda grande parte do público estava a recuperar de mais uma prestação enérgica e desinibida de Peaches no Palco Colina. Os acordes de "Ready For Love" foram atraindo pessoas para o sopé da colina. Aos poucos, a plateia compôs-se, mas ficou muito aquém do que tinha estado na véspera com Arctic Monkeys ou ainda no dia anterior com Chemichal Brothers. Depois de duas tareias, desta vez a relva da Bela Vista ia ter algumas tréguas. Pelo menos até à chegada dos Disclosure.
Os irmãos ingleses trouxeram de volta para a frente do palco os jovens indiferentes a Nick Cave e eram muitos. No último dia, não houve lotação esgotada mas andou perto disso. Até às 2.00 horas - impreterível hora de encerramento, cumprida religiosamente todos os dias - muitos milhares de pessoas despediram-se do Kalorama a dançar efusivamente ao som de um house talhado para grandes eventos, com batidas gordas e sintetizadores bastante pop. Uma clara antítese do anterior e melancólico inquilino do palco MEO.
Mal subiu ao palco, Nick Cave foi de imediato para a plataforma montada especialmente para ele, bem junto do público, quase em cima dos espetadores. É ali, a olhar as pessoas olhos nos olhos e a dar-lhe as mãos que o australiano se sente em casa. E foi ali que, à quarta música, descobriu que a Paula fazia anos. Dedicou-lhe "O Children" e Paula chorou.
Outra dedicatória, mais triste, foi a de "Into my arms" dirigida a Beatriz Lebre, uma jovem de 22 anos assassinada em 2020 por um colega de curso. "A mãe escreveu-me uma carta muito bonita a dizer que ela gostava muito desta música. Esta é para a Beatriz", anunciou Cave, que, por duas vezes, já sentiu a dor de perder um filho.
Aos 65 anos, o australiano continua a colocar toda a energia e empenho na atuação, vincando cada sílaba cantada como se fosse a última da sua vida. Lá atrás, Warren Ellis e os supercompetentes Bad Seeds davam-lhe a cobertura musical para ele livre e despreocupadamente percorrer a plataforma de um lado para o outro.
Cave é como que um pregador renegado, descrente com o mundo que o rodeia e que o desilude dia após a dia. E que o deixa ali a protestar contra um qualquer Deus, desiludido e indignado, de dedo apontado ao céu, cara marcada pela dor e sobrancelhas caídas de tristeza.
Por mais de duas horas, saltando entre a plataforma junto ao público e o banco do piano, entre o blues e o soul, a angústia e o desalento, o pregador Nick mostrou-nos os seus ensinamentos sobre a vida. Que é triste como "Waiting For You" ou "Into My Arms", tenebrosa como "White Elephant" ou arrepiante como a "Ghosteen Speaks" que terminou com o público a levantar os braços numa espécie de "ola" espiritual. Nick Cave e os Bad Seeds terminaram ontem a sua tournée europeia. Podem voltar quando quiserem.
Também Peaches esteve mais uma vez de regresso a Portugal e mais uma vez espantou e chocou. A canadiana acabou o concerto de cuecas e a despejar garrafas de champanhe enquanto cantava os seus "Teaches of Peaches". Ao contrário do pregador Nick, os ensinamentos de Peaches são de livre arbítrio, de hedonismo, de inconformidade e de choque frontal, seja contra o machismo, as restrições ao aborto ou os negacionistas do covid-19.
Depois da inicial fase punk, a última versão musical da canadiana é a de um eletro trash metal que veste couro (pouco) e toca guitarra "flying V". Suportada por um conjunto de bailarinas que se podiam chamar de "She-Kiss", houve partes do espetáculo de Peaches que fizeram lembrar uma versão maligna e metálica do videoclip "Addicted to Love", de Robert Palmer, com muitas poses sexuais e libido à solta.
Peaches não tem pudor, nem filtros. Terminou "Vaginoplasty" apenas de cuecas e ladeada por duas vaginas dançantes. É uma provocadora nata que aos 55 anos - que ninguém lhe daria - não mostra sinais de abrandar. Pelo contrário, parece estar cada vez mais indiferente ao que as pessoas pensam. Ainda bem para ela. E também para nós.
A eterna juventude dos Ornatos e a dança sorridente e soalheira de Moullinex
Os Ornatos Violeta acabaram há 20 anos, mas, de regresso em regresso, parece que nunca deixaram de andar por aí. Peixe já tem pouco cabelo e Manuel Cruz ostenta uma barba grisalha. Porém, em cima do palco continuam com uma juventude invejável. O franzino Manuel correu, saltou e até surfou pelo meio do público. Teve um deslize em "Um dia mau" ao não arrancar quando devia para o refrão. "Fodi tudo", admitiu. Ninguém se importou.
Foi mais um concerto energético e poderoso que tirou os clássicos do armário. Apesar de ainda não terem lançado nenhum trabalho este século, os Ornatos continuam com uma grande legião de fãs. São de todas as idades e sabem praticamente todas as músicas de cor. Assim sendo, será que vale a pena arriscar novidades quanto o que há ainda tem tanta saída? Até agora parece que não.
Antes, ao aproximar-se o final da tarde, o público do Kalorama foi confrontado com duas escolhas: o pop doce e apaixonado dos Grand Pulsar no palco Futura ou um live set de Moullinex com bateria e teclas no palco Colina. A maioria optou por este último e o topo da colina encheu-se de muitos sorrisos soalheiros e muita dança para um excelente fim-de-tarde.
Nove horas depois de Tiago Bettencourt ter subido ao palco para receber os festivaleiros, pontualmente às 2 horas da manhã o Kalorama deu por terminada a sua edição estreia. Ficaram para trás três dias de música, com quase 40 concertos e 112 mil espetadores. A próxima edição já está garantida para os dias 31 de agosto e 1 e 2 de setembro. Será em Lisboa, só falta saber o local em concreto.