Línguas inventadas para a ficção têm ganho cada vez mais fãs dentro e fora da indústria. Falámos com criadores.
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A ascensão das línguas inventadas na ficção é um fenómeno crescente e o refinamento é tal que estes idiomas têm gramática e sintaxe complexas. Hoje em dia, as "conlangs" (isto é, linguagens construídas) são mais populares do que nunca, e cada vez mais fãs de séries como "A guerra dos tronos" ou "Star trek" aprendem a falá-las, recorrendo a cursos e dicionários completos.
João Veloso, pró-reitor da Universidade do Porto e linguista, diz que neste fenómeno "há um objetivo estético ficcional, são linguagens inventadas como são as personagens ou os lugares. O código ficcional é o objetivo estético máximo". A outra função, acrescenta, é a de "atingir um código neutro em relação a todas as línguas". E lembra um episódio divertido: "Quando estava a crescer perguntava-me porque falavam os E.T. inglês no espaço? Os criadores de línguas ficcionadas conseguem apagar este rasto".
Mas como conseguem encontrar tantos adeptos? "É um efeito de identificação cultural, como que um universo paralelo. Os admiradores vestem-se como as personagens, adotam maquilhagem, nomes e as linguagens são uma subcultura urbana". Dito isto, João Veloso conta que, ao longo dos seus anos na academia, são raros os alunos com interesse pelo fenómeno da interlinguística - que, "aliás, quase não tem expressão em Portugal".
o reino de peterson
Nos meandros dos criadores de conlangs há um nome que tem sobressaído: o do americano David J. Peterson, responsável por 13 línguas, entre elas o Dothraki, falado em "A guerra dos tronos".
O criador explica ao JN o seu processo: "Eu crio algo original. A menos que haja um motivo para incluir algum idioma existente - como em "The 100", do canal CW, por exemplo, onde falavam uma versão futura do inglês - nunca me refiro aos idiomas existentes em nenhum estágio do processo de criação".
Outra das preocupações que não passam pela sua metodologia é o entendimento público: "Tento apenas criar algo único e que corresponda ao que os produtores procuram", explica. Mas nem sempre esta pressão das produções é favorável. Peterson conta que "normalmente levo alguns meses para criar um idioma, embora mais tempo seja o ideal. As melhores linguagens são aquelas que foram inventadas por indivíduos fazendo isso apenas para os seus próprios fins. Eles têm tempo para gerar algo verdadeiramente fantástico, ao passo que para um programa de TV ou filme, eu geralmente só consigo alguns meses, se tanto. Leva tempo para criar algo bonito".
De todas as conlangs por ele arquitetadas, "a mais difícil para mim foi a linguagem Bodzvokhan que criei para o filme "Bright", da Netflix. Tinha muitos encontros consonantais complexos que tornavam a pronúncia difícil. Mas foi divertido".
o antecedente klingon
Tiago Marques, estudante de Linguística da Universidade do Porto, está a escrever uma monografia sobre a temática da interlinguística. O estudante lembra que "nas duas últimas décadas, a Internet potenciou as comunidades que debatem o tema". E não tem dúvidas que, "a nível comercial, David J. Peterson é a referência. Foi o primeiro a ser contratado formalmente" para a elaboração de conlangs. Puxando a fita atrás, Marques ressalva que "o Klingon foi a linguagem que fez explodir os grupos de criação colaborativa". Para o investigador, este "é um fenómeno de merchandising, como usar uma camisola com o Legolas na frente".
Uma das críticas que estas criações mais recebem é o facto de 43% das línguas naturais do Mundo estarem em vias de extinção. Mas, refere Tiago Marques, "alguém que decide aprender Tolkien não quer aprender uma língua amazónica ou indonésia". Isto apesar de às vezes serem aplicadas ferramentas das línguas naturais às conlangs, dando como exemplo uma língua em que nunca se fala no futuro, apenas no presente e no passado.
uma sociedade poética
Nem só na ficção audiovisual se recorrem a estes artifícios. Valter Hugo Mãe criou uma linguagem para o mais recente romance, "As doenças do Brasil", fórmula a que já tinha recorrido em "O remorso de Baltazar Serapião". O escritor diz que "precisava de criar uma perturbação na língua, algo que retratasse de uma forma plausível como nós vemos uma comunidade indígena (duas palavras que dizemos erradamente)".
O fenómeno também aqui tem uma missão criativa: "Interessa-me como escritor criar, não fazer uma reportagem do que ali se passava. Sou a favor de uma sociedade poética".
Aprender
Dicionários e cursos online
Ao entrar na plataforma Reddit, facilmente se encontram vários fóruns dedicados às conlangs. Uma das mais fáceis de aprender é o Klingon, que além de ter vários cursos online, tem direito a um Instituto de Língua Klingon, nascida para "Star trek" . Para os fãs que partilham a paixão pela língua dos guerreiros, esta conlang transcendeu o âmbito da televisão e do cinema. No Instituto Klingon, além de se aprender o idioma, também se podem realizar traduções. Esta língua criada por Marc Okrand é uma das que têm disponível online um dicionário de Klingon-Português. No site da Glosbe também se encontra um dicionário online de Português-Dothraki. Outra conlang passível de aprender online é o Na'vi.