"Os Gigantes" de Victor Hugo Pontes para a Companhia Dançando com a Diferença abre esta quarta-feira o Festival Dias da Dança (DDD), no Teatro municipal Rivoli, no Porto. Na quinta-feira há uma nova récita.
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Há em "Os Gigantes" uma estranheza que não é disfarçada, mas é simultaneamente familiar como se encontrássemos uma caixa de música com uma bailarina dentro no meio de uma rua buliciosa. Não se esconde, não é tímida. Há nela uma força que não berra, mas que ocupa. Desde o primeiro momento, aquilo que se revela em cena não é um mundo a ser compreendido — é um mundo a ser sentido, confrontado, quase devorado. Victor Hugo Pontes, em colaboração com a Companhia Dançando com a Diferença, parte de Luigi Pirandello para criar algo que não é nem dança, nem teatro, nem metáfora: é presença pura.
Inspirado em "Os Gigantes da Montanha", texto inacabado de Luigi Pirandello, este espetáculo convoca o que há de mais urgente nesse inacabamento: a tensão entre a arte e o real, entre a delicadeza do gesto e a brutalidade do Mundo. Mas aqui, a trupe de artistas não chega a uma vila encantada. Chega, talvez, a um palco onde tudo já ruiu. E os gigantes, esses, são os próprios corpos em cena — corpos que carregam histórias, limites, feridas, mas sobretudo potência. São corpos que não pedem licença para existir.
A diferença como motor e não como exceção
Na Companhia Dançando com a Diferença, a diferença não é conceito: é prática, é carne, é estrutura dramatúrgica. Não há um olhar condescendente, nem há pedagogia do corpo fora da norma. Há, sim, uma proposta estética que parte da diferença como gesto inaugural, como motor de linguagem. E é aqui que a criação de Pontes atinge um lugar raro: recusa a ideia de inclusão como integração num sistema pré-definido. O que se vê em palco não é adaptação, é ruptura. A diferença não é encaixada — é afirmada.
A coreografia vive de tensões entre o formal e o intuitivo, entre o gesto marcado e o acidente. Os movimentos têm o peso de quem carrega o mundo nos ombros — e não por fraqueza, mas por sabedoria. São movimentos que se demoram, que desafiam o tempo do espetáculo tradicional, que obrigam o olhar a reaprender.
Figurinos: a armadura e o fantasma
Os figurinos, concebidos por Pedro Azevedo, não vestem os corpos — prolongam-nos. São, simultaneamente, armaduras e fantasmas. Há neles uma materialidade espessa, que contrasta com a leveza ilusória que tantas vezes se espera da dança. Tecidos que não fluem, que resistem e pernas que parecem perder-se num tecido-paisagem. Cada peça é uma ficção que o corpo veste — e desmente. E nessa relação entre o que é vestido e o que é movido, instala-se uma inquietação visual que é pura dramaturgia.
Os figurinos falam com os corpos, mas também com a ideia de espetáculo em ruínas: há algo de teatralmente gasto, de cerimonial interrompido, de desfile que já não desfila. São vestígios de uma trupe que insiste em representar, mesmo quando ninguém mais assiste.
O espaço cénico, quase vazio, é atravessado por luzes que ora denunciam, ora ocultam. A cenografia recusa o decorativo e aposta no essencial: chão, tempo, espera. Tudo vibra numa espécie de suspensão. E o som — sempre ele — funciona como memória e ameaça. São ecos, fragmentos, vozes que não se distinguem. A música (ou ausência dela) ressoa como aquilo que resta depois de um colapso: o rumor do mundo.
Arte como ato de resistência
No final, a pergunta que paira não é “quem são os gigantes?”, mas sim “quem insiste em criar apesar deles?”. A arte aqui não salva, não redime. Mas insiste. "Os Gigantes" não é um espetáculo sobre a diferença — é um espetáculo que se faz a partir da diferença. Que a celebra sem a estetizar, que a coloca no centro sem a converter em bandeira.
É, sobretudo, um manifesto silencioso sobre o poder de estar. Estar com um corpo que não se encaixa, que não corresponde, que não quer. Um corpo que inventa, que afirma, que dança. Um corpo que não cabe — e ainda bem.