António Jorge Gonçalves relata o quotidiano no novo livro “O caminho de volta”, onde o familiar e o estranho se aliam.
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No dia em que a sua mãe foi para o lar de idosos, António Jorge Gonçalves (Lisboa, 1964) começou a desenhar num caderno. Mais do que uma mera anotação visual de um período difícil, esse diário de bordo representou para o premiado artista e ilustrador uma forma de processar o impacto emocional de toda a situação.
Instintivamente, a mão pôs-se em movimento imediato, como se através desses gestos repetidos uma e outra vez conseguisse de algum modo apaziguar a incerteza do momento.
Afinal, como escreve John Berger em “On drawing”, “o desenho é um exercício de orientação e, como tal, pode ser comparado com outros processos de orientação que ocorrem na natureza”.
Por entre frases telegráficas, mas sempre assertivas, o autor de “Subway life” relata-nos nestes desenhos um quotidiano preenchido com visitas diárias à mãe.
As árvores, os comboios, os rostos dos transeuntes ou sacos do lixo amontoados na rua, tudo quanto lhe foi dado a ver nas viagens de ida ou de regresso até à nova morada da progenitora acabou por ser transposto para as páginas de “O caminho de volta”, um livro em cujo título ressoa a lenta despedida dos que nos são mais próximos.
O familiar e o estranho, o microscópico e o descomunal, vão-se revezando nestas imagens, como faces da mesma moeda, num desenho contemplativo em que a toada um tanto ou quanto nostálgica é contrabalançada pela observação serena do dia a dia, impassível perante a dor ou a alegria.
Um curioso diálogo nasce deste contraponto entre desenho e palavra. Se o primeiro é urgente, captando e registando aquilo com que se confronta, já as frases apelam a um sentido mais profundo que busca uma explicação, até mesmo para o que se deve mais ao aleatório.
Se em “Dita dor”, António Jorge Gonçalves entrelaçava as suas memórias de infância com a descrição dos últimos anos da ditadura em Portugal, como um espelho duplo em que o pessoal e o coletivo se completavam, agora, em “O caminho de volta”, é a esfera íntima que prevalece. Sem, contudo, jamais cortar as amarras com o Outro.