"Os quadros estiveram enterrados": Christina Oiticica traz “Fauna e flora” a Portugal
Mulher do escritor brasileiro Paulo Coelho realiza a primeira exposição nacional em Sintra, onde revela a sua técnica invulgar de "arte na terra". Inaugura este domingo. A entrada é livre.
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Há 20 anos, a natureza não deixava Christina Oiticica trabalhar nos seus quadros – sempre que secavam, algo caía na tela, uma folha, um inseto. Em vez de combater o mundo natural, decidiu integrá-lo. Agora, aos 71 anos, a artista plástica brasileira, conhecida em todo o mundo pela sua especialização e abordagem pioneira da Land Art, apresenta a sua primeira exposição em Portugal, em Sintra, durante um mês.
Composta numa colaboração surgida de um encontro feliz com o artista norte-americano Blake Jamieson, a mostra inédita "Fauna e flora" vai estar na Luka Art Gallery, no Palácio Biester, em Sintra, entre este domingo e 17 de agosto, e inclui obras que estiveram literalmente enterradas durante meses nas montanhas da Suíça, onde Christina vive com o marido, o escritor brasileiro Paulo Coelho
Depois de passar por 17 países, “Fauna e flora” chega a Portugal, uma estreia para a artista brasileira em termos expositivos, mas não um país desconhecido. A artista falou com o JN.
É a sua primeira exposição em Portugal, mas já conhece o país. Fale-nos das suas passagens por cá e das experiências que viveu.
A primeira vez que estive em Portugal, entrei por Faro e foi em 1982. Estávamos, o Paulo [Coelho] e eu, a terminar uma viagem de um ano pela Europa, e tínhamos comprado um Mercedes antigo na Embaixada da Índia na Jugoslávia. Quando chegamos a Portugal já era o nosso final de viagem e, para agradecer todas as bênçãos recebidas, resolvemos doar o nosso carro para uma instituição de caridade. Escolhemos uma de cegos. Ficamos hospedados na Baixa de Lisboa, na Rua Castilho. Estive muitas outras vezes em Portugal. Entramos pelo Norte várias vezes e percorremos de cima para baixo. E em outras, chegamos por Lisboa, que é uma cidade que me remete muito ao Brasil. Já fui várias vezes a Fátima. Quando acabei a peregrinação do Caminho de Santiago, fiz questão de terminar em Fátima. Apanhei um comboio, não fui a pé. Mas cheguei de madrugada e descobri que a estação ficava a vários quilómetros do Santuário. Não tinha vivalma por lá e a neblina fazia tudo parecer um cenário de filme de terror. Mas deu tudo certo! O único táxi que apareceu disse que tinha ouvido um comentário de que iam chegar uns emigrantes da França e resolveu ir à estação.
Para mim, os lugares também são as pessoas que encontramos. O Paulo tinha um editor português chamado Mário de Moura, que viveu muitos anos no Brasil. Ele abriu, em Portugal, a Edições Pergaminho. E a primeira vez que Paulo veio como autor, foi pelas mãos desse editor. Ele reservou-nos um Hotel em Sintra, pois adorava a cidade. E sempre que eu o encontrava, falava que eu tinha de fazer uma exposição em Portugal. Ele morreu no ano passado. Já não era mais editor do Paulo, mas tornou-se um amigo muito querido, junto com a sua esposa, Iona. Na semana passada recebi vários livros que ele escreveu nos últimos tempos da sua vida. Trago uma lembrança muito prazerosa. Ele também me apresentou aos travesseiros de Sintra, que adoro. Tenho muitas histórias para me lembrar desse país tão hospitaleiro e bonito. Muitas férias e comida deliciosa! Paisagens incríveis e tradições encantadoras.
Como define e explica a Land Art e como se associou a esta técnica e se especializou nela?
É o movimento artístico que é marcado pela junção da natureza com a arte. "Arte da Terra", pois usa recursos próprios da natureza para a criação da obra de arte. Normalmente, o artista interfere na natureza com as suas criações. No meu caso, o meu trabalho recebe a interferência da natureza. Não conheço outro artista que trabalhe assim. [Tudo começou] pela minha circunstância, não tinha espaço para trabalhar, vivia num hotel de duas estrelas nos Pirenéus franceses. Precisava preparar uma exposição que seria apresentada em Paris. Então, resolvi ir para o campo para pintar as telas e deixava lá durante a noite para secar. No dia seguinte, sempre encontrava folhas e insetos que grudavam na tinta e, algumas vezes, marcas de animais noturnos. No início, achei que tinha estragado o quadro, mas depois tive uma epifania: que a Natureza seria a minha parceira.
Quando se trabalha com algo tão vivo, cheio de energia, não se consegue parar. Levei os meus quadros para a Amazónia, o Caminho de Santiago, em Espanha, o Caminho de Kumano, no Japão, e para o Rio de Janeiro, entre outros lugares. E eu compreendi que, como eu sempre trabalhei com os signos do feminino, eu estava ali a fechar um ciclo. Pois a natureza e a terra é a Grande Mãe.
Quais os desafios, vantagens e desvantagens de trabalhar com esta técnica?
Os desafios são muitos, pois eu nunca sei como vai ser o resultado final, se eu vou encontrar o trabalho... Depois, a parte de fazer com que o quadro esteja pronto para a galeria e para a exibição é um trabalho de arqueologia, de restauração muitas vezes. Tudo vai depender de onde deixei o trabalho, o material que eu usei etc... Eu amo essa técnica. É difícil, leva muito mais tempo, mas eu aprendi muitas coisas com ela. Que tudo tem o seu tempo e a paciência é um dom. A recompensa é que faço um trabalho único, que acredito e amo.
Se é a natureza também a falar, uma expressão do que nos rodeia, tudo é para si inspiração?
Inspiração é um dom também. Mas para mim, vem através do trabalho. Quando estou no processo de criação, por exemplo. Tirei os quadros "Fauna e Flora" da terra e alguns estavam em pedaços no meio da terra, dentro de um saco plástico, quando chegaram ao meu atelier. Comecei, então, a pensar na técnica da porcelana japonesa que, quando uma peça quebra, é emendada com o ouro, o que torna a peça mais valiosa. Chama-se Kintsugi. Nesse momento, todos os quadros automaticamente passaram a ter o fundo dourado, mesmo os que não estavam aos pedaços. Acrescentei também as folhas de ouro à pintura. Esse acabamento final, dessa inspiração, só nasceu porque eu estava trabalhando e tinha de ter uma solução. Pergunta-me se tudo para mim é inspiração, a minha resposta é: sim, tudo pode ser inspiração.
Sobre esta exposição, como se deu o encontro com Blake Jamieson?
Foi muito rápido e direto. Vi uma publicação dele no Twitter sobre um livro do Paulo, "O Alquimista", e emocionei-me. Pensei que seria ótimo trabalhar com ele. Marcamos uma conversa por zoom. Eu propus o nome da exposição, "Fauna e Flora", e combinamos que ele pintaria a flora e eu, a fauna. E que seriam dez quadros. Encontrámos-mos em agosto de 2022, na Suíça, deixamos os quadros enterrados em Monthey, e desenterramo-los no último 12 de maio.
As telas estiveram literalmente enterradas?
Sim, as telas ficaram nove meses enterradas. O meu trabalho é o inverso do percurso do homem. Sai de casa, da caverna e vai para a natureza. É um trabalho peregrino, ele é afetado pela maneira de ser da própria natureza. Quando deixo o meu trabalho nos campos, nas florestas, nos leitos de rio, ele não somente capta o elemento físico, espacial, mas o elemento energético. Quando está na Natureza, vai-se identificando e vai reagir a esse corpo. O trabalho vai para a terra e depois dela é retirado, cumprindo um período telúrico de gestação. A Natureza torna-se a minha sócia, a obra recebe, de alguma forma, uma impressão digital da própria Natureza. O resultado, para mim, é sempre surpreendente. E o resultado final dessa parceria, torna-se uma arte inimitável porque em cada caso arbitrário das águas, do vento, dos mistérios das pedras e da terra interagem de forma única sobre a matéria.
Que planos tem para o futuro ou está já a trabalhar em algo novo?
Sim, tenho dois projetos já finalizados que fiz no decorrer desses três últimos anos. Deixei vários trabalhos nas Salinas de Marsala, na Sicília, pois estou a trabalhar com o sal em anos mais recentes. Na realidade, fiz vários trabalhos com as águas, do mar, rios, etc. O resultado está a ser incrível. Também fiz uma parceria com um Índio da tribo dos Pataxós, um artista chamado Tatu, no sul da Bahia. Esse projeto chama-se "Raízes" e como diz um pajé da tribo: "Podem cortar os nossos troncos, mas nunca arrancar nossas raízes." As pinturas são tribais e eu pintei também animais brasileiros, como a serpente, a onça, o sapo verde... Comecei com o círculo, que é o feminino. Utilizei as pinturas corporais, cada uma tem um significado: para o casamento, para caçar e até para morrer. Eu chamo também o caminho da pele. Sou uma artista peregrina.