
"A Forma da Água"
DR
Estaremos todos em patamares sentimentais diferentes, na esperança ou depois na conformação, mas há uma coisa, ou talvez duas, que são certas na 90.ª edição dos Oscars, os prémios americanos de cinema cuja cerimónia é este domingo a partir da meia-noite, hora nacional.
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A primeira é que este é o ano das mulheres, significando que escolhemos, globalmente, ver a realidade a partir da perspetiva delas. E não é só por causa do movimento #MeToo, em que as mulheres americanas da indústria do cinema se levantaram e disseram publicamente, como Zola disse do antissemitismo, "j"accuse!", alvejando de seguida machistas, misóginos e predadores sexuais. É também, e sobretudo, por causa do valor natural e intrínseco às mulheres, que, finalmente, traz consequências a uma indústria de secular predomínio masculino. Assistimos a coisa semelhante no ano passado com os artistas negros e o moto #OscarsSoWhite.
Juízo: um homem é mau, logo é um mau artista?
A segunda certeza é que, como num cataclismo que percorre o cinema em réplicas subsecutivas, estamos finalmente a falar de monstros e perversidades pessoais, mas às vezes confundindo-as com determinações e realizações artísticas que só devem ser julgadas nesse limiar. Dito de outro modo: pouco importa que um ogre como Harvey Weinstein nunca mais ponha os pés num plateau, mas importar-me-ia, e muito, se Tarantino nunca mais pudesse filmar - como me incomoda, e muito, deixar de ver um ator luminar como Kevin Spacey. Dito de outro modo ainda: quando compro bilhete para ver um filme de Woody Allen, só julgo o realizador e a sua arte, ou a falta dela; não julgo o homem nem as suas ações pessoais, sendo aí irrelevante se ele é pedófilo, incestuoso ou parricida - se for, que seja réu, mas a sala de cinema não é um tribunal.
Del Toro: o milagre do amor e da inclusão
É no meio desta nova e voraz doutrina moral que hoje assistiremos ao triunfo de um filme fantástico que faz o amor exultar: "A forma da água", conto de fadas e de monstros com que o mexicano Guillermo Del Toro crava um Série B no coração "mainstream". A ação é nos anos 60: o Governo americano descobriu um maravilhoso ser alienígena anfíbio mas, ao invés de o celebrar e de querer aprender, desconfia dele, prende-o, viola-o e quer aniquilá-lo. Será salvo por uma empregada de limpeza muda que aprende a comunicar com ele e sabe evidentemente que tem de o salvar.
É uma preciosidade: mágico, emocionante, romântico até ao tutano, estranhamente sensual, é uma poderosa metáfora de inclusão que tem três coisas que Hollywood adora: uma história de amor estonteante, um julgamento de preconceitos do passado e um tributo à eternidade da magia do cinema. Del Toro, realizador que o Fantasporto da boa memória descobriu e premiou na estreia ("Cronos", 1994) e na consolidação ( "O labirinto de Fauno", 2007), conseguiu um pequeno milagre, seguindo todas as regras e nenhuma, trilhando o seu orgulhoso caminho indómito. Ganhará melhor filme e realizador e vai dar um banho nas categorias técnicas.
Casas de apostas: "Três cartazes" vai à frente
Mas as casas de apostas de Las Vegas, que são tudo menos românticas, discordam dos críticos: o site Bovada mantém como favorito "Três cartazes à beira da estrada", do escritor-dramaturgo-cineasta Martin McDonagh (probabilidades: 20/23) à frente de "A forma da água" (7/5), de "Foge" (11/2) e de "Lady Bird" (14/1). O site londrino OddsChecker também põe "Cartazes" acima da "Água".
Quanto aos atores, as casas da sorte alinham com os especialistas: consagração para Gary Oldman em "A hora mais negra" (o ator desaparece na pele de Churchill e contamina para sempre a nossa memória do estadista inglês) e Frances McDormand na comédia negra "Cartazes" (é uma mãe de guerrilha que provoca a Polícia que nada fez sobre a violação e homicídio da sua filha). Nos secundários, vitórias para Sam Rockwell, o destrutivo polícia racista de "Cartazes" em busca de redenção, e Allison Janney, a duríssima mãe de "Eu, Tonya", que nos reconta a história real, e também muito negra, da queda em desgraça da patinadora artística dos EUA Tonya Harding, que agrediu uma concorrente para chegar às Olimpíadas (foi, é claro, banida para sempre e só voltou a subir a um ringue porque lhe deram um ringue de luta livre; Margo Robbie é essa belíssima atriz).
Coisa curiosa das apostas: Steven Spielberg está numa posição rara - o seu dramático libelo pelo jornalismo e pela verdade, "The Post", tem um péssimo quociente de vitória (100/1), juntamente com "A hora mais negra" e "A linha fantasma", o filme--poesia de Paul Thomas Anderson sobre as linhas invisíveis (e contraditórias) que cosem o amor.
"Foge": o filme mais vital de todos eles
Assumindo o lado da minoria desejosa, o meu favorito do ano é "Foge", o filme da denúncia "trumpista" de Jordan Peele. Coloco-o acima de "Dunkirk", o majestático filme de guerra em que Christopher Nolan (são seus os melhores "Batman") adopta uma perspetiva de Kandinsky, pintor que sabia que a melhor forma de vermos um quadro é estarmos dentro do quadro, e acima ainda do magnânimo "Chama-me pelo teu nome", do italiano Luca Guadagnino (a paixão solar e febril entre um homem e um adolescente; claro que nunca será premiado neste contexto de terramotos morais).
"Foge" é a acídula crítica de Jordan Peele (39 anos) ao racismo e à dominância branca na América de hoje. Ferocíssimo, o filme ataca e desarma o espectador com uma mistura de drama, comédia, thriller e terror, montando uma poderosa e cavernosa alegoria no seu aberto jogo social de caçada aos negros. É afiado como um bisturi, muito assustador, muito cómico e absolutamente vital. O seu triunfo como melhor filme seria o melhor choque do ano.
