"Não haverá mais filmes até que a gripe acabe", avisava uma notícia do "The New York Times", publicada em outubro de 1918. É um título estranhamente familiar, cem anos depois de a gripe espanhola ter colocado a ainda ténue indústria cinematográfica em estado incerto.
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Hollywood, a cidade dos megaestúdios que criaram a prevalência americana da produção, distribuição e exibição de cinema, ergueu-se dos escombros dessa crise: os pequenos produtores não sobreviveram, consolidaram-se os outros e provou-se a resiliência da Sétima Arte.
Chegámos de novo a mais um "momento disruptivo" nesta história, para usar as palavras do presidente da Academia de Cinema portuguesa, Paulo Trancoso, e recordar outra que se tornou indissociável do cinema: streaming.
acelerar a mudança
A Netflix adicionou 15 milhões de subscritores só no primeiro semestre (efeito do confinamento) e tem quase 190 milhões de clientes em todo o Mundo. Este ano, os Oscars vão aceitar filmes que não estrearam em sala. Há cadeias de exibição de cinema que faliram. Em Portugal, houve estreias que passaram para o digital e filmes que obtiveram sucesso nas plataformas - "Mosquito", que só conseguiu estar em sala uma semana antes de tudo fechar, tornou-se no mais visto da Filmin, serviço de streaming nascido em Espanha e com uma versão nacional.
"A pandemia acelerou muitas ideias. Os próximos dois ou três anos vão ser decisivos, mas o streaming veio para ficar", assegura Trancoso ao JN. Resta saber como é que o "jogo de forças entre as plataformas, os estúdios e as salas se vai concretizar". Antes de mais, é preciso "tornar as salas de cinema mais atrativas do que as salas nas nossas casas".
Do ponto de vista do espectador, "duvido que volte tudo à normalidade", diz também Anette Dujisin, responsável da Filmin, serviço que, entre março e maio, "triplicou o número de subscritores". A mudança terá consequências imprevisíveis, mas Dujisin acredita que serviços como o seu estão a "dar uma janela ao filme", mais uma oportunidade, remunerada, para que seja visto. E as estreias de cinema nacional no Filmin vão agora acabar, para que o circuito habitual seja retomado.
Igual empenho em defender o cinema tem a Spamflix, plataforma de streaming lançada para o Mundo a partir de Portugal em 2018 (e que lançou este mês as suas apps móveis). Depois da TV e do vídeo, muito se debateu o eventual fim do cinema, mas as previsões mais catastróficas falharam. Estamos a viver "mais uma mudança tecnológica e as plataformas não vão acabar com a indústria, pondera Júlia Duarte, coproprietária da Spamflix, opinião aliás partilhada com o seu colega Markus Duffner: "Haverá complementaridade" entre as plataformas e os produtores.
"Vamos ter outras vítimas da covid-19", que foi "agente catalisador" de uma mudança já em andamento: "empregos e modelos de negócio", prevê Filipe Pereira, do Fest, festival de cinema de Espinho, "que não acredita que as coisas possam voltar ao que eram". Mas avisa: "A consolidação vai ser tão prevalente, que será preciso criar novas regras, para proteger a criatividade" e o cinema independente.