
Adolfo Luxúria Canibal
Gonçalo Delgado/Global Imagens
Adolfo Luxúria Canibal e José Carlos Costa assinam novela gráfica sobre a solidão atual.
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Não é preciso fazermos um esforço mental assim tão grande para nos lembrarmos de figuras típicas da nossa infância cujos contornos quase se confundiam com os da cidade ou local de onde eram oriundos. Imensamente populares, transportavam dentro de si o código genético da sua origem geográfica, como se fossem uma extensão humana de uma determinada localidade.
De estirpe um pouco diferente é este Crespos, o protagonista da novela gráfica que Adolfo Luxúria Canibal escreveu e José Carlos Costa ilustrou.
Ao contrário do que costuma suceder com estas figuras, ele não é fanfarrão, expansivo ou sequer dialogante. De cenho sempre franzido, faz da monotonia de gestos e hábitos o seu cartão de visita, suscitando a atenção dos outros pela forma imperturbável como executa os seus rituais, indiferente à forma como essa postura modorrenta possa ser interpretada pelos que o rodeiam.
"Há exatamente 34 anos, seis meses e sete dias que todas as tardes, entre as 14 e as 15 horas, o Crespos se senta na mesma cadeira à mesma mesa da velha Brasileira." Assim inicia o músico e escritor a enxuta descrição desta personagem que faz do enigma a sua condição maior. Com efeito, ninguém sabe ao certo o que se passa na cabeça deste homem enquanto permanece sentado no mais emblemático café de Braga, rodeado por uma multidão indistinta que ao longo dos anos aprendeu a conviver - ou seja, ignorar - com tão bizarra criatura.
Se durante o Estado Novo muitos o confundiam com um inspetor da PIDE (ou um bufo) pela forma como evitava chamar as atenções gerais sobre si, a eternização da sua presença fez com que passasse a ser uma espécie de adereço humano do café, alguém cuja presença só é lembrada quando não está.
O drama de Crespos é, afinal, o drama de uma certa população das cidades que, envelhecida e sem sonhos, se arrasta penosamente pelos locais públicos, saudosa de um passado que jamais voltará. Mas o que poderia parecer mais uma evocação nostálgica de um inelutável esvaziamento humano das urbes, cada vez mais rendidas a espaços anódinos, ganha um inesperado volte face com o final encontrado pelos autores. Com laivos de um Julio Cortázar ou qualquer outro autor igualmente excêntrico, o desenlace confere à história o fôlego ideal para se fixar por muito tempo na mente do leitor.
O Crespos
Adolfo Luxúria Canibal, José Carlos Costa
Porto Editora
