Na cultura, há uma dicotomia nas relações Portugal/Brasil: o interesse na literatura é mútuo, e autores como Valter Hugo Mãe e até Fernando Pessoa vendem cada vez mais. Mas na música, o caso é outro: portugueses mal se ouvem por lá.
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Camões, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Herberto Hélder, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, José Saramago: alguns dos mais icónicos escritores portugueses há muito que atravessaram o Atlântico para encher corações e almas dos brasileiros com a nossa tão distinta escrita.
O interesse e a ligação são antigos - quem trabalha em edição em Portugal sabe-o, quem gosta de visitar páginas nas redes de autores e editoras também, sendo comuns os pedidos de publicação no Brasil das obras que ainda lá não chegaram. As bienais, os encontros literários, também o demonstram: no campo da literatura, a paixão pela escrita e autores de ambos os países é mútua e crescente. Mas no mundo da música já não será tanto assim.
Assírio faz nova aposta no Brasil
Em março deste ano, no Dia Mundial da Poesia, a portuguesa Assírio & Alvim, do Grupo Porto Editora, lançou mesmo uma chancela no Brasil, com destaque para a poesia mas espaço para um grande número dos maiores nomes da literatura portuguesa e obras de referência dos mais diferentes géneros.
O diretor editorial Vasco David referia, a propósito da criação da Assírio & Alvim Brasil: "Há muitos anos que sentíamos um grande interesse proveniente do Brasil por aquilo que íamos fazendo cá. Isto foi-se manifestando de diversas maneiras, por exemplo através do número de visitantes brasileiros no nosso site, pela participação de leitores brasileiros nas nossas redes sociais, pela quantidade significativa de e-mails perguntando como adquirir algum livro nosso no Brasil, pelo número de autores brasileiros que nos enviam originais ou propostas de publicação". A editora avançou e publicou, até o momento, seis livros no Brasil, inclusive "Mundo" da Ana Luísa Amaral, que faleceu recentemente.
O editor e autor brasileiro Thales Guaracy juntou-se a esta "nova" editora de Portugal no Brasil, em parceria com a sua Autores e Ideias Editora. Ao JN, Guaracy explica o objetivo simples: publicar autores portugueses no mercado brasileiro, com a possibilidade de lançamento de autores brasileiros também em Portugal.
Segundo o escritor, é certo que há "grande interesse" no Brasil por autores portugueses, tanto que no site da Assírio & Alvim em Portugal a maior frequência de compradores já era de leitores que moram em São Paulo e Rio de Janeiro, nesta ordem, depois de Lisboa.
Há "grande interesse" no Brasil por autores portugueses
O interesse dos brasileiros divide-se entre vários autores, adianta Thales Guaracy, inclusive contemporâneos, sobretudo de poesia."Há hoje grande procura especialmente por Fernando Pessoa, que ganhou muitos leitores no Brasil, impulsionado recentemente pelas redes sociais, como o Instagram", conta.
Do lado contrário, em Portugal, a última autora brasileira lançada pela Assírio & Alvim foi a poeta Adélia Prado. "Contamos também com o tempo abrir caminho para que se publiquem um pouco mais autores brasileiros em Portugal", frisa Thales Guaracy. E explica: "acredito que estamos também a colaborar com este momento importante, no qual celebramos os 200 anos da independência do Brasil, feita de maneira que pudemos conservar os laços de origem, não apenas da língua como da raiz e do património cultural que nos une. Por meio da literatura, em grande parte, essa ligação vem sendo cada vez mais valorizada, ainda mais hoje em dia, quando o meio digital aboliu fronteiras do pensamento; e procuramos reforçar no Brasil o esforço pela educação e a afirmação de nossa identidade civilizatória".
O sucesso de Valter Hugo Mãe
Além dos clássicos, também muitos escritores mais recentes são autênticos fenómenos no Brasil: António Lobo Antunes, Pedro Eiras, Teolinda Gersão, Francisco José Viegas, Adília Lopes, entre tantos outros. Valter Hugo Mãe é no entanto o escritor português que atualmente mais vende no Brasil. A sua popularidade é notória nas vendas, redes sociais e nos convites - o autor já teve de recusar diversos porque estava a ser chamado em casos mais pelo fenómeno do que por conhecimento da obra. Mas são muitos os brasileiros que o conhecem bem, apreciam, e o carinho é mútuo.
"A minha obra inteira está editada no Brasil, da mesma maneira que está aqui", explica ao JN o português, que confessa que apesar de escrever agora mais sobre Brasil o interesse já veio de antes. "Houve sempre um grande apoio, participei há uns anos num festival e a aceitação foi muito grande e sucederam-se os convites", adianta, falando de uma relação forte com os leitores há já mais de dez anos.
E qual é a explicação? "Existe uma graça que é o facto de terem prestado atenção", diz Valter Hugo Mãe. "Quando conseguimos que um país desta dimensão preste atenção, as possibilidade de ser lido são enormes. Mas é preciso saber também se lhes interessa ou não e de alguma forma sempre fui fascinado pela cultura brasileira, sempre acompanhei autores, músicos. Eu não me sinto absolutamente estrangeiro no Brasil e acho que os brasileiros não me sentem absolutamente estrangeiro também", frisa.
"Intercâmbio cada vez mais presente, diz Antônio Grassi
Antônio Grassi, ator e renomado gestor cultural brasileiro (foi presidente da Funarte e do Instituto Inhotim), foi comissário do Ano do Brasil em Portugal (2012) e desde o início deste ano vive em Lisboa. Aqui tornou-se sócio da Livraria Ler Devagar, onde inaugurou o Espaço Talante, um centro cultural voltado para a Lusofonia. Fala ao JN de um "intercâmbio cada vez mais presente" entre os autores da língua portuguesa, "não só Portugal e Brasil como os países da língua portuguesa como Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé".
O gestor explica que "já ultrapassamos aquela fase em que só os nossos clássicos, quer de Portugal como brasileiros, eram reconhecidos de país a país". Hoje, "a presença é grande tanto nas feiras literárias no Brasil como nos encontros em Portugal, é muito comum encontrar cada vez mais essa presença dos autores da língua portuguesa, como Mia Couto, Agualusa, Ondjaki, Afonso Cruz". Da parte do Brasil, lemos Itamar Vieira Junior (prémio Oceanos 2020), Carla Madeira, Conceição Evaristo, Nelida Piñon, Sérgio Abranches, Miriam Leitão, Marcia Tiburi, por exemplo. Além dos já clássicos Jorge Amado, Machado de Assis, Chico Buarque, Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Érico Verissimo e Carlos Drummond de Andrade. E também Adélia Prado, Laurentino Gomes, Eric Nepomuceno ou Rubem Fonseca (Prémio Camões), entre tantos outros. "É uma relação muto sólida", reitera Grassi. "E está cada vez a acontecer mais".
Na música é o contraste: portugueses pouco ouvidos no Brasil
Se na literatura a paixão é mútua, na música não se poderá dizer o mesmo. Há largos anos que os portugueses são fãs e consumidores de música brasileira - dos clássicos como Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, a Marisa Monte, Ney Matogrosso, passando pelos fenómenos, alguns de longevidade como Ivete Sangalo, outros mais recentes como Anitta e Pedro Sampaio ou os Jovem Dionísio. Do lado de lá, o interesse não é igual.
"As vendas de artistas portugueses no Brasil são algo residual, especialmente atendendo à dimensão do mercado no Brasil. Esporadicamente há algum caso de um ou outro artista com alguma penetração lá, mas é sempre dentro de um nicho de mercado relativamente limitado. Ultimamente temos tido boas reações quando fazemos colaborações entre artistas portugueses e brasileiros, mas a penetração dessas colaborações dá-se sempre mais em Portugal do que no Brasil", diz ao JN Tiago Palma, A&R Manager da editora Universal..
Alguns casos recentes foram do Diogo Piçarra que já colaborou com artistas muito grandes lá da nova MPG como as Anavitória, o Jão ou a Clarissa, o Fernando Daniel com os Melim, os Calema com o Zé Filipe, o António Zambujo que já teve músicas em novelas e que já colaborou com o Chico Buarque ou a Gal Costa, o Pedro Abrunhosa com o Ney Matogrosso, a Capicua com o Emicida, o Rael, a Mallu Magalhães ou a Karol Conká, o Agir com o Vitão e com a Manu Gavassi", esclarece Tiago Palma.
Há algumas explicações: "Musicalmente, o Brasil é por norma um país fechado à influência não só portuguesa mas também à anglo-saxónica e estrangeira no geral. Normalmente os artistas que mais facilmente furam no Brasil são artistas com estilos de música mais tradicionais e com ligações à raiz portuguesa. Ainda assim, alguns artistas representados pela Universal que têm tido boa performance no Brasil, seja com colaborações ou com concertos, têm sido por exemplo o António Zambujo, o Tiago Nacarato e o Diogo Piçarra".
Brasileiros têm impacto enorme em Portugal
No plano inverso, dá-se o oposto: "A lista de artistas brasileiros que têm ou tiveram impacto em Portugal é enorme", adianta o responsável. No passado, este impacto foi largamente potenciado pela influência das telenovelas brasileiras em Portugal, que durante muitos anos foram lideres de audiência.
"Há também uma grande comunidade brasileira em Portugal, o que aliado a uma grande fatia do público português que consome música brasileira faz com que a música brasileira chegue rapidamente e singre em Portugal". Certo é que, "desde os sucessos mais atuais de Anitta, Pedro Sampaio ou Zé Filipe, aos clássicos Chico Buarque, Caetano Veloso ou Ivete Sangalo, passando pelos novos valores como o Tiago Iorc ou Anavitória, os artistas brasileiros sempre tiveram muito boa aceitação em Portugal", conclui.
São poucos mas estão a crescer
Bernardo Miranda, Diretor Geral Sony Music Entertainment Portugal, partilha da mesma opinião e revela ao JN dados semelhantes: "O número de vendas dos artistas Portugueses no Brasil ainda é reduzido ou pouco significativo à escala do mercado brasileiro, mas tem crescido bastante nos últimos 3 ou 4 anos. São cerca de 8 os artistas com canções com streams acima dos 5M, sendo que 2 deles conseguem ultrapassar os 10M se juntarmos os streams de várias canções. Para referência, um grande sucesso no Brasil, pode atingir, ao dia de hoje, 150/200 Milhões de streams.
Segundo este responsável, há apenas alguns casos de sucesso: "historicamente o António Zambujo e a Carminho têm um percurso indie interessante no Brasil. No âmbito mais pop e mais recentemente, artistas como Deejay Telio, David Carreira, Calema, Plutonio, Matias Damásio e Anselmo Ralph têm consigo furar e obter algum interesse e algumas vendas. O sentimento é que a música portuguesa nunca esteve tão próxima de ser exportável para o Brasil, mas à data de hoje ainda não houve nenhum fenómeno com impacto suficiente".
Do lado oposto, de novo um comportamento e interesse totalmente opostos também.
"Já há muitos anos que a música brasileira está estabelecida no mercado português e qualquer grande sucesso do Brasil, é sucesso em Portugal", diz o diretor da Sony. "Desde de Tom Jobim, Chico Buarque, Djavan, Caetano Veloso ao fenómenos dos temas da novelas da Globo nos anos 90 e 2000, ao Roberto Carlos, Michel Teló ao Iran Costa, e agora o movimento do trap brasileiro com o Matuê, Teto, L7nnon, Filipe Ret e tantos outros, a música brasileira continua a ocupar parte importante dos nossos charts. Nos dias de hoje entre os artistas com maior sucesso estão Luan Santana, Gusttavo Lima, Pedro Sampaio, Zé Felipe, L7nnon, Matuê, Teto, Luísa Sonza, Anitta, entre outros", conclui.