O Festival de Cannes encerra este sábado as suas portas, com o anúncio do palmarés oficial. Será a hora em que o júri presidido por Juliette Binoche irá revelar os filmes que mais o impressionaram, entre os quais o recipiente de um dos prémios mais desejados por quem faz cinema em todo o mundo, a Palma de Ouro.
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As restantes secções foram entretanto divulgando os seus prémios e há duas distinções de vulto para o cinema português, em Un Certain Regard, vocacionado de novo para primeiros e segundos filmes e obras onde a experimentação tem um lugar importante. Cleo Diára foi considerada a Melhor Atriz, pelo seu trabalho em “O Riso e a Faca”, de Pedro Pinho, e os irmãos palestinianos Tarzan e Arab Nasser levaram o prémio de Melhor Realização com “Onde Upon a Time in Gaza”, segunda coprodução dos cineastas com a portuguesa Ukbar Filmes. Aliás, quando a sua seleção para Cannes foi anunciada, os dois realizadores encontravam-se em Lisboa a terminar a pós-produção de som do seu filme.
Cleo Diára foi formada pela Escola Superior de Teatro e Cinema e tem uma forte presença no mundo teatral, fazendo parte do coletivo Aurora Negra. No cinema, foi vista em filmes como “Diamantino” e “Verão Danado”, respetivamente de Gabriel Abrantes e Pedro Cabeleira, realizadores que também estiveram em Cannes este ano.
Em “O Riso e a Faca”, Cleo Diára contracena com Jonathan Guilherme e Sérgio Coragem, o protagonista da história de Sérgio, um engenheiro ambiental português que viaja para uma metrópole da África Ocidental, para trabalhar com uma organização não governamental na construção de uma estrada entre o deserto e a selva, envolvendo-se numa relação com dois habitantes da cidade, Diara e Gui.
Num tom de farsa, Tarzan e Arab Nasser construíram em “Once Upon a Time in Gaza” uma história ambientada em 2007, mas que nos fala por antecipação sobre a situação atual no território, ao acompanhar as suas personagens em busca de sobrevivência, cruzando-se com a tentativa de rodar o primeiro filme de ação em Gaza, um pequeno restaurante de falafel que esconde uma rede de tráfico de droga e um polícia corrupto.
Nesta importante seção do festival, o grande prémio foi entregue a “La Misteriosa Mirada del Flamengo”, primeiro filme do chileno Diego Céspedes. A história passa-se em 1982, quando uma estranha e desconhecida doença contamina uma pequena localidade mineira no deserto chileno. Os homens homossexuais da comunidade são acusados de a transmitir, apenas com o seu olhar. Uma jovem de doze anos, a única rapariga que ali vive, decide investigar…
O fim do regime de Saddam Hussein
Nas outras secções paralelas, destaque para o Prémio do Público entregue a “The President’s Cake”, de Hasan Hadi, realizador do primeiro filme iraquiano a ter uma seleção em Cannes, falando-nos dos últimos dias do regime de Saddam Hussein.
“Imago”, autorretrato do realizador checheno exilado em Paris Déni Oumar Pitsaev no seu impossível regresso a casa, e o sonho de construir uma casa na Geórgia, do outro lado da fronteira com o seu país que ainda não existe, venceu o Golden Eye, que premeia o melhor documentário exibido em todas as secções.
O filme já vencera um dos prémios na Semana da Crítica, cujo júri premiara como melhor filme “A Useful Ghost”, do tailandês Ratchapoom Boonbunchachoke, uma história de amor e fantasmas que se desenvolve após a morte de uma mulher, causada pela poluição ambiental.
Mas é do palmarés oficial que todo o mundo do cinema está à espera. Apesar dos dois filmes iranianos a concurso, de Jafar Panahi e Saeed Roustaee, do experimentalismo de “Ressurrection”, do chinès Bi Gan, e de “Sound of Falling”, da alemã Mascha Schilinski e dos bons filems do italiano Mario Martone, do brasileito Kléber Mendonça Filho ou do ucraniano Sergei Loznitsa, há um filme que não sai das bocas de toda a gente que o viu aqui em Cannes, o espanhol “Sirat”, de Oliver Saxe.
Uma autêntica trip cinematográfica, o filme acompanha um homem que está em Marrocos com o filho mais novo, em busca da sua filha mais velha, envolvendo-se com uma comunidade que viaja em duas caravanas, de rave em rave. A possibilidade de uma terceira guerra mundial e um trágico acidente vão desviar estas personagens do seu caminho inicial. O filme, experiência radical em termos visuais e sonoros, é o grande favorito da maioria dos jornalistas creditados em Cannes. Mas nunca se sabe…
Há no entanto um dado significativo. Ontem ao fim da tarde, era possível ver a passear tranquilamente em Cannes uma das atrizes do filme. Ora, o realizador de todos os filmes das seções oficiais é convidado com a sua equipa a permanecer em Cannes durante três dias, para acompanhar a estreia e fazer a divulgação do seu filme, entregando de seguida as chaves dos seus quartos aos clientes seguintes, no que é uma impressionante logística organizada pela equipa do festival.
O júri é entretanto convidado a organizar o seu palmarés de forma a se poder convidar de novo a vir a Cannes os vários vencedores, na maior parte dos casos já há alguns dias de regresso a casa, como a equipa de “Sirat”, um dos primeiros filmes da competição a serem exibidos. A presença de novo em Cannes de pelo menos uma das atrizes de “Sirat” indica que o filme deverá ter um prémio. E os únicos que levam ao palco do Teatro Lumière os seus atores são os de interpretação, e não nos parece que seja o caso, e a Palma de Ouro! Para confirmar mais logo.
Entretanto, a celebração dos 50 anos da Palma de Ouro de “Crónica dos Anos de Brasa”, realizado por Mohamed Lakhdar Hamina, exibido na seção Cannes Classics, foi ensombrada, poucas horas depois do seu final, pelo anúncio da morte do realizador, aos 91 anos. O filme, de que foi exibida uma esplendorosa cópia restaurada, com o apoio da Fundação da Família de George Lucas, foi a primeira e até agora única Palma de Ouro da Argélia, de África e do mundo árabe. Estava prevista a presença do realizador, mas o seu estado de saúde impediu-o de viajar, tendo um dos seus filhos, ator juvenil do filme, lido uma mensagem do seu pai. Grandiosa recriação dos últimos anos do brutal colonialismo francês na Argélia e da luta pela independência, que seria estabelecida em 1962, o filme, visto nas extraordinárias condições que Cannes permite, assume-se como uma das maiores obras-primas do cinema africano e um marco no cinema da década de 1970.