Biblioterapia ganha finalmente visibilidade em Portugal, com um número crescente de praticantes e seguidores. Primeira associação do setor está pronta a arrancar.
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“Biblio... quê?” Os dedos das duas mãos não são suficientes para Sandra Barão Nobre contar o número de vezes em que foi obrigada a repetir o nome da sua atividade. Há nove anos, quando se iniciou, o espanto era a reação mais comum. Hoje, a situação é muito diferente. “A biblioterapia continua a ser uma ilustre desconhecida para alguns, mas noto uma grande curiosidade em saber mais e perceber em que consiste”, afirma.
Mesmo para quem já ouviu falar desta ferramenta terapêutica alicerçada na tese de que a leitura tem um poder transformador, impera muitas vezes a ideia simplista de que a atividade se resume à prescrição avulsa de obras literárias, esquecendo-se todo o trabalho de acompanhamento e mediação permanente.
Nos últimos anos, vários estudos vieram reforçar a validade científica da biblioterapia no bem-estar e equilíbrio do indivíduo, com resultados particularmente encorajadores em quadros de depressão e ansiedade, mas também na autoestima ou combate ao bullying. “As histórias que estão nos livros são a matéria de trabalho e que nos permite abordar questões como a empatia, compaixão, apaziguamento, capacidade de nos expressarmos melhor ou simplesmente colocarmo-nos no lugar do outro”, reforça Sandra Barão Nobre.
Da escola ao hospital
Foi a partir da pandemia e do reconhecimento da importância da saúde mental que a biblioterapia ganhou visibilidade. A primeira profissional portuguesa deste ramo notou, desde logo, a mudança pela forte procura da formação online, até então inexistente, mas também pela entrada nas escolas, objetivo que acalentava há muito, por permitir-lhe trabalhar com um público ainda em formação, como o jovem.
As bibliotecas continuam a ser os seus “clientes” mais assíduos, embora não faltem também maternidades, prisões ou hospitais. Atualmente, tem trabalhado na unidade de psicologia forense no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, com um grupo de homens com doença mental condenados pela Justiça.
Nesta experiência que qualifica como “riquíssima”, a biblioterapeuta tem desenvolvido um trabalho que passa pela partilha de histórias, mas também por atividades de escrita criativa a partir desses relatos. “É um imenso espaço de liberdade onde dizem tudo o que lhes ocorre”, diz.
Se os parceiros institucionais representam a esmagadora maioria dos pedidos, a biblioterapia pode, também, ser levada para os locais de trabalho, cumprindo propósitos como o reforço do espírito de equipa ou uma comunicação mais eficaz. Contudo, este segmento corporativo quase não tem expressão no trabalho que Sandra Barão Nobre desenvolve normalmente, o que atribui a um conjunto alargado de fatores, entre os quais “a baixa formação média dos empresários” ou “a predominância dos homens em lugares de decisão”.
Certificação impõe-se
O interesse crescente que a biblioterapia tem despertado mede-se ainda pelo número de pessoas que já se dedicam à atividade. Já legalizada e pronta a funcionar, a Associação Portuguesa de Biblioterapia vai procurar ser um ponto entre os interessados desta área, mas sobretudo “garantir critérios éticos e criar redes de profissionais de diferentes áreas, como psicólogos, médicos, bibliotecários”, afirma a presidente, Cláudia Passarinho, psicóloga que começou a interessar-se pela biblioterapia ainda na faculdade, tendo posteriormente feito uma pós-graduação na área.
A certificação é um dos grandes objetivos da associação. Na ausência de formação específica em Portugal, os interessados têm feito pós-graduações no Brasil e formações certificadas em países como a França, Reino Unido e Canadá. “A associação terá um papel fulcral na certificação de novos profissionais” já a partir do próximo ano, revela a dirigente.
Apesar de o número de pessoas que se dedicam a esta atividade a tempo inteiro ser ainda muito diminuto, os praticantes regulares são já “várias dezenas”, estima Cláudia Passarinho.
Em contextos educativos ou sociais, são muitos os médicos, terapeutas, psicólogos e enfermeiros que recorrem ao método. “Tenho a certeza de que a biblioterapia será brevemente integrada na saúde em Portugal como uma terapia fundamental para a promoção da saúde e a prevenção de doenças”, acrescenta.
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Origem remonta ao início do século XX
Foi em setembro de 1916 que Samuel McChord Crothers (1857-1927) cunhou a palavra “biblioterapia”. Num artigo intitulado “A literary clinic”, o norte-americano juntou duas palavras de origem grega: “biblio”, isto é “livro”, e “therapeía”, ou seja, “terapia” ou “tratamento”, formando assim a palavra portuguesa “biblioterapia”.
Prática surgiu na década de 1940
O primeiro exercício conhecido desta prática remonta a 1949 e aludia ao “processo de interação dinâmica e de caráter psicológico entre a personalidade do leitor e a literatura”. Com o passar dos anos e o aprimoramento das técnicas, a biblioteca é vista sobretudo como “um método que explora o impacto de caráter psicológico e emocional das histórias e põe em marcha o seu potencial transformador, para cuidar de qualquer pessoa e contribuir para o seu desenvolvimento e bem-estar”, afirma Sandra Barão Nobre.
Os vários géneros de biblioterapia
São várias as abordagens possíveis, de acordo com o objetivo. Uma das principais é a biblioterapia clínica, que consiste na leitura de ficção por pessoas com problemas emocionais e comportamentais, e o subsequente diálogo com o mediador. Na biblioterapia de desenvolvimento, por sua vez, há leitura de textos de ficção ou didáticos, por indivíduos ou grupos de pessoa que enfrentam problemas ou desafios do quotidiano. Na vertente institucional dá-se a leitura de textos didáticos por pessoas institucionalizadas, que depois os discutem com médicos. Outros subgéneros incluem a abordagem criativa, informal, corporativa e de autoajuda.