Para lá de toda a esperança: "O sentido da náusea" é o derradeiro livro de Michela Murgia
O derradeiro livro da italiana Michela Murgia, "O sentido da náusea", apresenta-nos uma visão elegíaca da vida da autora desaparecida em 2023.
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Frágeis como quaisquer outros seres, as personagens que dão forma a "O sentido da náusea" confrontam-se, a dada altura da sua vida, com uma notícia ou acontecimento que subitamente coloca tudo em perspetiva. Da revelação de um cancro terminal à decisão de uma mulher carregar no ventre o filho do seu melhor amigo, pese embora a aversão que nutre por crianças, há nestes relatos, narrados sem artifícios de maior por Michela Murgia, uma visão elegíaca da vida.
Mais do que um "statement" forçado, com o objetivo de atrair leitores interessados nesses universos sombrios, o tom do livro parece corresponder à convicção pessoal da autora de "Ave Mary" (também publicado em Portugal pela Elsinore) da impotência humana perante as grandes questões.
Escritas durante a covid-19 - não faltam alusões a máscaras, vacinas e demais terminologia pandémica -, as 12 histórias aqui reunidas não vêm, por isso mesmo, imbuídas de mensagens falsamente embrulhadas em discursos estéreis de esperança para contentamento momentâneo do leitor (se for esse o seu caso, é melhor procurar o livro pretendido na estante de autoajuda).
Muito provavelmente inspirado por circunstâncias biográficas (Murgia foi diagnosticada em 2023 com um cancro renal que a vitimou em poucos meses), "O sentido da náusea" oferece-nos uma perspetiva ampla das diferentes dimensões que as crises existenciais podem assumir e de como os protagonistas desses infortúnios, por muito que não se conheçam, estão interligados por uma quase invisível teia de cumplicidades.
Nem só de ocorrências funestas se tecem estas páginas. Por vezes, ainda que não tenham sido visitadas pela tragédia, as personagens mostram-se incapazes de escapar a um vazio tão devorador como o pior dos acontecimentos. É o que acontece com a mulher que protagoniza o conto "Boneco animado", uma pacata esposa e mãe que, sem razão aparente, encomenda uma réplica humana vinda da Ásia, criando com o objeto inanimado um vínculo que não consegue estabelecer com aqueles que a rodeiam.
Solidão, orfandade espiritual e desamparo são apenas alguns dos sintomas de que padecem estes seres, cada qual uno na sua individualidade, mas, ainda assim, suficientemente universal para que haja uma identificação por parte de quem lê estas histórias.
