Como foi o primeiro dia do festival? Foi bonito, atirou Frank Carter and The Rattlesnakes para o pódio primordial e foi uma convulsão. De resto, o melhor foi o rock, a seguir também, e depois idem. Mas também houve eletrónica (que pareceu um belo SPA) e houve ainda Jessie Ware. Ela desapontou? Concordamos em discordar.
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Primeiro os mais velhos. Os Yo La Tengo, a mais firme instituição do indie rock norte-americano gourmet, circa 1984, um catálogo de 39 anos e a contar, vieram cá combater a escuridão omnipresente e enredar-nos no seu novelo metálico de estática elétrica lo-fi. Não são uma banda espetacular ao vivo — não dialogam, não macaqueiam, não dizem que somos um país espetacular, entram e tocam e dizem o que têm a dizer com a música e é só. “Obrigado a todos, foi um prazer, muito obrigado”, disse simplesmente no fim, já a sair do palco, um braço a saudar-nos a meia haste no ar, Ira Kaplan, o vocalista e guitarrista de 66 anos que lidera o trio grisalho YLT. Os temas também não têm entremeios, encadeiam uns nos outros como grilhões e tudo sai num jorro contínuo de som.
Em palco estiveram todos juntinhos, os YLT são uma família, os três estão chegados à boca da cena, e estão sempre concentrados nos seus afazeres alquímicos. Em palco não se passa muita coisa e as luzes mexem-se mais do que os músicos. As luzes varrem-nos por cima com fios de luz branca e azul e a luminescência esticava-se a derramar um claro-escuro alternado que pintava a encosta composta de gente — esteve a 2/3 a plateia do 1.º dia do Festival Vodafone Paredes de Coura, interpolada, não estava compacta como é costume, quem se dispusesse chegava facilmente à frente —, num bonito efeito cinematográfico de espectros e sombras em que parecia que o público estava todo a mexer-se, agitado na degustação.
Mas não, não estava: lá à frente, no fundo da encosta junto ao palco é sempre efervescente, seja o que for que estiver a soar, mas da caixa da régie de som para trás, naquela metade maior o público estava parado e espetado de pé ou envasado na relva em modo passivo e zen; no cimo da encosta havia até famílias e pares de namorados enroscados, sentados em mantinhas plácidas de xadrez, enquanto à sua frente se desfiava um espetáculo adulto de rock.
E depois o Ira assanhou-se
Será exagerado dizer que o concerto dos Yo La Tengo foi varado por uma certa mornidão. Não foi exatamente, aquilo ardia, mas era uma urdidura lenta, como se fosse um fogo contido, um fogo vivo todavia comedido, e poderia quase ser esquecível se não fosse aquele mantra arrebatado final.
O final foi bravo, Ira Kaplan assanhou-se com a guitarra e entregou-se à possessão.
Foi um número teatral muito bom: Ira parecia um miúdo travesso, ergueu a guitarra muito ereta, muito alta no ar, depois virou-a de cabeça para baixo, tornou a revirá-la, esfregou a estonteada no amplificador, socou-a, arranhou-a, isto com ela sempre ligada, o feedback a estalar, a guitarra quase a sangrar, chegou ao cúmulo de a levar deitada no ar, como se levasse uma bandeja ou uma oferenda para um castigo superior, e entregá-la à baterista, que é a sua mulher Georgia, para que esta lhe batesse nas cordas com as baquetas.
E ela bateu-lhe com força, como se lhe batesse nos dentes, enquanto o Ira continuava possuído a assanhar, e isto tudo durante um longo mantra hipnótico de ‘noise’, chispas invisíveis pelo ar, o baixo a bombar todo mandão, tóxico, narcótico, num ‘loop’ delirado, tresvariado, e isto durou uns bons 15 minutos.
Foi uma especialidade, como um prato fora da carta que só se serve a comensais especiais, e agora é àquele quarto de hora que a memória toda daquele concerto se vai agarrar.
Saíram sob palmas francas, mas de certo modo comedidas, e ninguém urrou. Todo o respeito para os Yo La Tengo, são uma instituição, mas os Yo La Tengo não trouxeram a Coura a exaltação.
Jessie Ware a boiar
O que aconteceu ali depois no palco Vodafone — aconteceu Frank Carter and The Rattlesnakes e foi uma convulsão — vai ficar para os anais. Terá sido a melhor performance da noite e de todo o primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura 2023. E foi um acto punk.
Mas antes: Jessie Ware. A cantora britânica de 38 anos era o prato principal da noite. Ela faz sophisti-pop, borda o R&B e ao seu quinto disco, "That! Feels Good!”, encharca-se em disco-sound. O álbum vai mais além das vibrações do género, mergulha na mecânica bem oleada de bandas como Chic, Sister Sledge ou até os Trammps primordiais, e Jesse Ware alcança aqui um feito raro: o álbum é fiel ao revivalismo do género, não soa a repetição requentada, e injeta nervos novos ao disco-sound com soul. É muito bom de ouvir, não foi assim tão bom de ver.
O concerto não foi mau, não foi isso, ela deu tudo, saiu com a cara e a maquilhagem a derreter, a voz é potente, possante, poderosa, tinha quatro coristas em preto cetim a dançar, às vezes parecia que aquilo ia estrondar, chegar aos píncaros prometidos, mas não chegou, houve ali qualquer coisa que não clicou. Dançava-se, mas não inteiramente, não da cabeça aos pés, não redondamente, não incondicionalmente. Por alguma razão, a encosta só tinha público até metade, o que aqui não é nada habitual.
“Que belo festival! Vocês tão bem?”, diz ela a meio, a arfar embeiçada, sem esperar pela resposta. “Já estou cá há uma semana de férias com a família, estamos a adorar. Que bonito país vocês são”. O público respondeu imediatamente, obviamente, palmas, palmas. Mas a coisa ficou por ali, meia a boiar, não foi ao fundo, não levitou, é seguro: não houve sobrelevação.
Às vezes é uma questão de química, um mistério epidermóide, não se escolhe, ou há ou não há ebulição, é o que é, e aqui pressentiu-se que ela não chegou lá, que faltou arroubo, um ímpeto mais, mais desejo, mais gana, mais fogo que ardesse e desse para ver. Muito sintomaticamente, a canção mais festejada do seu set, e o set foi curto, 45 minutos só, foi uma canção que não é dela: “Believe”, a canção da Cher, aí sim, dança desatada, braços no ar, sorrisos até aos pés. Foi pena, mas não chegou.
Punk, palmas e palmas
A exaltação da noite, e, sim, verdadeiro número de superação, foi um número punk. Repita-se o seu nome porque o nome aqui é novo: Frank Carter and The Rattlesnakes.
À segunda canção, Frank Carter, um tipo de sotaque muito ‘brit’, muito aceso, irrequieto como um tigre, óculos escuros de armação branca, sardónicos como os óculos de sol de férias, cabelo comprido húmido, braços tatuados, camisa aberta, peito todo tatuado também, diz isto a arregalar os olhos virado para nós: “I fucking love you all! Gosto de vocês todos! Tu e tu e tu, todos! Todos! Até os que estão no concerto ali ao lado!”.
Ali ao lado, no palco Yorn mais acima no recinto, vibravam os fãs de Julie, fãs de ferro, fizerem mosh e crowdsurf, joviais, ridentes, uma coisa que é um regalo de ver. E o concerto de Julie ainda decorria, já o Frank Carter tinha começado, e soava alto, a entrar pelo intervalos das canções do outro palco adentro, a entrar licenciosamente, cheio de som e de fúria, a arrombar como uma nuvem de três tempestades cruzadas a ventar. É um trio de novos ‘nerds’ do noise, Julie, fazem shoegaze, são uma bela descoberta, são o remédio ideal para quem andar a ressacar de My Bloody Valentine.
Agora sim: o punk e todas as palmas
“Amor para todos!”, repetia o Carter, que ao terceiro tema disse que queria abrir ali uma pista de dança, um ‘mosh pit’ a sério, uma coisa que ser visse. Os espectadores da frente arreganharam logo os sorrisos, abriram o ‘pit’ da roda punk a esticar braços e pernas, dançaram desatinados como amantes dementes, e levantaram uma nébula de pó dourado muito fino que a partir dali ficou sempre a pairar e a mudar de forma, como o fogo que tremeluz mas que jamais apaga ao vento, por cima das cabeças dos espectadores abrasados e felizes da frente.
“Esta agora é sobre a tua ex”, continuava o Carter, todo turbulento, enquanto o seu quinteto de Rattlesnakes atacava logo a canção, faíscas, coriscos, fagulhas, a eletricidade toda a raiar. “E esta é para os que estão lá atrás!”. E depois: “E esta é para os que se querem apaixonar!”, sempre assim, umas enfiadas atrás das outras naquele modo muito punk, acelera-acelera-trava, canções curtas, muito rápidas, muito tesas, muito altas, ótimas canções para quem se quer exorcizar.
Ele mandou e toda a gente se agachou
“Eu tenho demónio dentro de mim”, berrava o Frank Carter em “Devil inside me”, uma canção de batida marcial, guitarras a roncar, as palmas batidas em contrapeso, ele endemoninhado, o guitarrista a saltar para o ‘pit’, todo suado, à beira da eletrocussão. E depois o Carter pára tudo, vira-se outra vez fixado para nós, manda toda a gente agachar-se, toda a gente se agacha, ele ri-se, nós também nos rimos, estamos ali na encosta de Coura acocorados, e ele passa a explicar: “Quero ver toda a gente a saltar, todos ao mesmo tempo, quero ver uma onda gigante a levantar. Estão prontos?” E ele retoma o verso, a batida marcha, aquilo vai em crescendo, é uma parede inteira de som, e quase quase a chegar ao refrão ele faz o gesto dirigente, o braço é a batuta do punk, e de repente saltamos todos ao mesmo tempo como se fossemos uma mola só, uma só voz a cantar “há um demónio dentro de mim, um monólito de destruição, há um demónio dentro de mim, e há um dentro de ti”. E depois as palmas caem altas como se caíssem de uma cachoeira e ficam a ressoar.
“Isto foi mesmo fixe!”, diz o Frank Carter todo contente, ruivo como uma cenoura a sorrir. “Esta canção agora não é para nenhum de vocês”, diz ele a pausar antes de cantar “My Town”, “porque vocês”, e ele pausa de novo, e depois cola as palavras todas com hífens, “porque-vocês-vivem-no-raio-do-país-mais-lindo-do-mundoooo!”. Palmas, gritos, guinchos, tudo ali na encosta em todo o lado ao mesmo tempo.
Performer eletrizante, cheio de ‘speed’, Frank Carter, um enfeitiçador, foi a personagem maior do primeiro dia dos 30 anos de Coura. Antes de sair haveria de dizer “que noite linda, tão linda, linda, obrigado por terem vindo, isto significa tudo para nós”. E ele entrega então, vai passar uma exata hora desde que começou, e a hora passou a correr, a última canção: “E agora uma canção de amor para cantarem com todos os pulmões. É uma canção para a vossa pessoa especial”, diz o tigre a sorrir entre as cascavéis, “a pessoa que vocês mais odeiem no mundo!”. A canção chama-se “I hate you” e é um belo chorrilho sem rendas, sem espinhas, é um buquê de arame farpado, de insultos uns atrás dos outros do pior. Punk mais punk não há.
Quem diria, Frank Carter and The Rattlesnakes nunca tinham tocado por cá! Que bonito que foi ver os punks comovidos.
E Squid, o que é que aquilo é?
Veias ácidas, flores selvagens exóticas, estridência, uma predileção especial por notas agudas, eletricidade estática a rabear no ar, um trompete, baixo e guitarra, teclas, um baterista que é o cantor: são os Squid, quinteto britânico especial.
É pós-punk experimental, é rock new wave, é krautrock ambiental, é uma coisa avant-garde, é muito masculina, mas tem requintes, e em mais do que uma canção, mas sobretudo naquela que tem o refrão “I play mad”, puseram o público do palco Yorn a saltar e a surfar como pulgões. Foi o ato mais depurado da noite, esquisito mas esmerado, sofisticado até, não é para todos os palatos, é só para os palatos do bom gosto.
E depois houve aquele inesperado SPA
Depois de tanto e tão bom rock, fechar a noite no palco Vodafone com um duo de eletrónica às duas da manhã, os Bicep, foi uma esplêndida ideia.
Foi uma bela “séance”, esta da dupla irlandesa Bicep — a banda nasceu de um blog que se transformou numa explosiva festa itinerante e que deu depois origem a uma editora vibrante, a Feel My Bicep. O que eles oferecem é uma investigação enxuta e consciente dos melhores sons de dança do Reino Unido, house, techno, dubstep, com temperos psicadélicos de mão leve.
Postos à mesa de pé, um em frente ao outro, de lado para nós, a mexer incessantemente nos seus arquipélagos de botões, os dois Bicep montaram uma hiperdiscoteca a céu aberto, luzes fortes de veludo, strobes a estrelejar, linhas de laser a voar por cima das nossas cabeças, a bater nas copas das árvores atrás, como pirilampos estonteados no ar, a especialização dos Bicep, o crescendo, aquele som que sobe, sobe, sobe, sempre a salivar, e que depois explode, impetuoso, na arrebatada batida gorda e gloriosa — “Waterfall”, “X (feat. Clara La San)” e “Meli (II)” são pedras preciosas —, foi uma delícia para os sentidos. Foi como ir ao SPA depois de se ter passado todo o dia numa pedreira suada a metralhar.