O hip hop confessional de Loyle Carner abafou o rock de Brian Jonestown Massacre e The Walkmen e o rock perdeu. Desire foi um film noir pop super sexy e Sudan Archives uma surpresa das melhores.
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Este planeta não pertence ao nosso sistema solar. Fever Ray, o projeto de synth-pop anfíbio da sueca Karin Dreijer que fechou a 2.ª noite do palco Vodafone Paredes de Coura às exatas 3 horas da manhã, não é deste mundo. Orbicular, circula em torno de uma estrela totalmente diferente do sol e tem a sua própria encíclica de regras. É disjuntivo, disruptivo, escorregadio e visceral, é extravagante, calórico e narcótico, é hipnótico, é muito sensual, mas sensual de uma forma tensa e lunar. É pulsante, parece gelo quente a fumegar, mete um bocadinho de medo, faz o sangue ferver, é terrivelmente original, tem uma colossal qualidade global sobrenatural.
Imaginemos a osmose de um corpo heteróclito feito de partes iguais do cinema de David Cronenberg, David Lynch e das justas sátiras cruas do cruel Ruben Ostlund. Diga-se simplesmente: é um delírio esquisito como o raio. O hip hop confessional de Loyle Carner abafou o rock de Brian Jonestown Massacre e The Walkmen e o rock perdeu. Desire foi um film noir pop super sexy e Sudan Archives uma surpresa das melhores.
No fundo e na forma, aquilo é pop, pop experimental digital e trip-hop ambiental, é hipercolorido, é supersaturado, é sempre minimal, é carnal mas também é maquinal, e ninguém sabe como reagir àquilo, ninguém sequer como é que aquilo se deve dançar. E a grande encosta de Coura, que teve ali com Fever Ray a sua maior plateia até aqui, um plateia devota de espectros espantados, ficou ali sem debandar, entre o pasmo e o choque, presa — talvez para sempre — naquela hipnose integral.
Não é um concerto, é uma performance total
Fever Ray não dá concertos, monta meticulosas performances teatrais. Mas é uma encenadora perversa: esconde-nos sempre o livro das instruções.
Em palco estão cinco mulheres e uma neblina que parece estar viva. Existem fantasias, há coreografia, luzes espectrais, as canções são reimaginadas e recontextualizadas e são servidas nesta tournée de “Radical romantics”, o glorioso disco novo de Fever Ray, numa lenta e provocatória desaceleração. É um gesto perverso e parece deliberado: ela quer contorcer-nos, quer deixar-nos o corpo à beira da derrisão, quer a devassa, a imoral, quer impedir-nos de dançar.
As cinco mulheres são cativantes, envergam figurinos exóticos de alta-costura estúrdia: a da bateria parece uma deusa negra púrpura extravagante e sacrificial a radiar e toca a bateria de pé; a das programações e teclas, atrás como aquela e metida num pequeno pódio, enverga uma gabardina de lustro verde e tem um chapéu-nuvem de algodão por cima da cara de mimo assustado.
À frente estão as três vozes, são vozes acídulas e sobrepostas, a de Karin Dreijer é notável e distinta, mas desniveladas para fugir à harmonia, e Karin está no meio delas em toda a sua glória andrógina, uma gravata floral gigante pendurada, o cabelo loiro-branco lambido com virgulas nas pontas, metida num fato branco ilógico XXL como o de David Byrne de “Stop making sense”. As outras duas, da forma como se vestem, parecerem ter fugido de um circo túrbido e transtornado e metidas num nightclub de luzes negras que só abre fora de horas.
A coreografia é lenta, parecia intensamente deliberada para que cada centímetro do seu corpo e dos corpos das outras duas cantoras se sincronizasse ao milímetro. A maquilhagem de todas elas é exagerada, embalsama-as e enfatiza a qualidade sobrenatural da performance, que não pára de crescer na sua estranheza magnética, insinuante, totalmente absorvente, a sugar-nos permanentemente o ar.
Uma máquina de sugar energia
Toda a gente reagia com caras de interrogação, o corpo queria mexer-se mas parecia atado por cordas ocultas, cataléptico, ninguém descobria a fórmula ou as instruções para dançar.
Fever Ray tem um talento especial para meter na melodia ganchos imprevisíveis e heteróclitos e uma maneira singularmente distorcida de construir consonâncias. A música em si é cheia de subtilezas sintáticas pop e complexidade, enquanto as letras são quase conflituosas na sua franqueza — e todas estão a falar-nos de amor, mas de um amor alienígena, extra-sagital.
Tocadas sequencialmente, as canções “To the moon and back”, “Shiver” e “Kandy” foram um trio fenomenal e provocaram um pico de emoção. Mas foi um píncaro pervertido, foi como se o funk, o house e o trance que gravita na órbita sintética das canções tivesse sido extraído à força, desfigurado e corrompido, como se as canções tivessem sido desossadas e transformadas em líquido, e esse fluído fosse de novo injetado no corpo, atirando as canções para uma zona subtonal de fantasmas escuros e ácidos que só conseguimos ver se fecharmos os olhos.
O show de luzes é impressionante, é outra vez gelo quente, e culmina no ecrã gigante retroiluminado em que vemos sempre a pulsar uma fenda ameaçadora horizontal, e que explode de brancura feroz naquela última linha dos versos de “To the moon and back”, com o seu grito delirantemente excitado cantado pela parte do público da encosta da frente, lá em baixo onde se plantam os verdadeiros fãs, os fãs de ferro, que também sabiam de cor o refrão de “Shiver, um refrão lamentoso e gemido, “eu só quero ser tocado/a, eu só quero tremer, posso confiar em ti?”.
“Carbon dioxide”, outra canção tóxica de amor, foi um transe distorcido e sugador, “If I had a heart”, uma canção viking cheia de chispas microscópicas de techno, abalou-nos o corpo e o coração, e “I’m not done” fechou gloriosamente o set de uma hora e 20 minutos — Karin e as outras duas mulheres das vozes saíram de cena discretamente e voltaram com umas capas negras de estivadoras que pareciam querer condecorar o Gene Kelly de “Singing in the rain” — era para isso que estava lá no palco aquele candeeiro suspeitoso. No fim, depois de nos agradeceram mudamente a fazer corações encovados com as mãos, internaram-se na penumbra e desapareceram.
Aquilo aconteceu mesmo? Foi assombroso. Nunca vimos nada assim, uma beleza anómala tão inquietante, tão misteriosa e tão devoradora. Sem peias: o pódio vai todo, e imediatamente, para o exoplaneta pop de Fever Ray — e não estamos a ver aqui, nem em lado nenhum desta constelação, quem a poderá destronar.
Loyle Carner, o rapper a seguir, e o resto
Tudo o resto do 2.º dia do Vodafone Paredes de Coura parecerá periférico e supletório e banal.
Mas não foi: Loyle Carner, o rapper inglês de 28 anos nomeado para o Mercury Prize com o novo disco “Hugo” (cerimónia a 7 de setembro), apresentou-se com um quarteto soul dulcíssimo e o seu set de hip hop multissilábico foi melancólico, dinâmico, franco e francamente comovente; Desire, o duo italo-disco da LA de Johnny Jewel, foi um film noir lúbrico e cheio de lascívia — a vocalista Megan Louise, num microvestido de vinil, meias de renda, pernas intermináveis, é a pantera mais sexy que até agora aqui se viu a flanar — e tocaram uma borbulhante versão de “Bizarre love triangle” melhor do que a dos New Order, por isso até se perdoa o playback da Louise; e Sudan Archives, com o seu lirismo ousado e engenhosidade técnica pop/R&B — energia frenética tão calmante quanto fisicamente esmagadora — deram o melhor concerto convencional do dia, considerando que Fever Ray não foi só um concerto porque foi muito mais.
Os dois números de rock adulto do dia, Brian Jonestown Massacre e The Walkmen, desapontaram os melómanos mais escrupulosos com a sua mornidão. Ainda assim, melhor os segundos, que conseguiram um dramático pico emotivo com o pós-punk de guitarras que explodiram a tilintar na “The rat”, uma canção com 19 anos celebrada como um single novo, porque os do Brian Jonestown Massacre se puseram naquela pose de rockers que se estão nas tintas e pouco mais conseguiram do que enfadar.