Alma é uma mulher da alta burguesia de Bordéus, mas com uma vida vazia e sem interesse. Um dia, recolhe em sua casa Mina, uma mãe solteira e os seus filhos. As duas mulheres têm algo em comum: os maridos estão presos.
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Entre Alma e Mina vai estabelecer-se uma inesperada relação de amizade e cumplicidade. Patricia Mazuy colcoa lado a lado Isabelle Huppert e Hafsia Herzi em “A Prisioneira de Bordéus”. O filme estreou mundialmente em Cannes, onde estivemos a falar com a realizadora.
Apesar de haver duas personagens principais o título refere apenas uma prisioneira…
Em francês, o título assim é mais romanesco. Qual delas é a prisioneira é a grande questão do filme. É claro que são as duas prisioneiras, mas cabe ao espetador decidir qual é a do título. Para mim, é um bom título.
A primeira cena, caleidoscópica, transmite desde logo um tom algo surreal, fantasioso, ao seu filme.
Eu sabia que estava a fazer um filme com a Isabelle Huppert. E que partia de uma circunstância de base muito social. Mas também queria desde logo dizer que estávamos num melodrama. Precisava de encontrar uma abertura que desse um tempo ao espetador para se habituar, para perceber que era um filme com alguém que conhece bem, a Isabelle Huppert, mas que percebesse também que ela estava a interpretar uma mulher frágil. Que não era a Isabelle, mas a Alma do filme. Era preciso um tempo de adaptação.
O cenário dessa cena também tem um papel importante…
Estava à procura de uma florista onde pudesse filmar. E quando vi aquele teto com murais góticos, achei que era um bom começo para o filme. Passei o verão a ir lá de duas em duas semanas a ver se eles não o reconstruíam.
A casa, que é também uma personagem do filme, é muito burguesa, mas no interior parece haver uma certa utopia, de eliminar as diferenças.
Foi um longo processo, encontrar esta casa. Sabia que tinha de filmar em Bordéus. Mas hoje em dia, a maior parta das casas de famílias ricas têm paredes brancas. Tinha de encontrar uma casa com paredes de cor. Tecnicamente, para a câmara, era muito melhor. Estava a ser difícil encontrá-la. As pessoas ricas de Bordéus são muito secretas.
Finalmente, como é que a encontrou?
A Isabelle Huppert disse-me que tinha uma casa de férias no País Basco e que uns vizinhos de lá eram de Bordéus. Telefonei-lhes, com a ideia de me apresentarem a pessoas ricas de Bordéus, disseram-me para ir ver a casa deles e é a casa do filme.
Como trabalhou com a Isabelle Huppert a construção da personagem, que não é de todo o cliché da mulher burguesa?
O guarda-roupa é muito importante para mim. É um instrumento para os atores. Para a Isabelle era muito importante encontrar a silhueta certa. Uma mulher da burguesia já ela interpretou imensas vezes. Tínhamos de encontrar uma outra imagem, o que deu imenso trabalho. Ela é muito exigente neste departamento. Interpretou tantos papéis, mas este filme é este filme. Era uma novidade para ela.
E para a Hafsia Herzi?
A mesma coisa. Era preciso encontrar a silhueta da Mina, para evitar o cliché da mulher árabe a viver nos subúrbios e que tem de criar sozinha os seus filhos.
Voltando à Isabelle Huppert, em termos de caracterização da personagem, deu-lhe algum tipo de indicação ou deixou-a livre?
Nós construímos a personagem juntas. A Isabelle Huppert não gosta de ensaiar muito. E eu não sou uma realizadora que aborde as personagens de uma forma muito psicológica. Mas é verdade que neste filme há muito de psicologia, porque ambas as personagens são tão complexas. No caso da Alma, enfrenta a solidão da sua vida. Era algo que tínhamos de mostrar através de vários detalhes, que o espetador consegue sentir, não precisam de ser explicados.
São duas personagens distintas, mas que a certo ponto se identificam. Como colocou isso no guião?
Ao princípio não era eu que devia realizar o filme. O Pierre Courrège e o François Bégaudeaux estiveram seis anos a escrever o guião. Devia ter sido o Pierre a realizar o filme, mas não conseguiu encontrar financiamento.
O que decidiu mudar da ideia inicial do filme?
Na altura, era apenas uma mulher rica e uma mulher pobre a falar uma com a outra sobre as suas vidas. Nem se viam os maridos. Os diálogos eram bons, mas era demasiado conceptual para mim. Queria que a história fosse paradoxal, é isso que gosto nos filmes, haver uma surpresa a certo ponto. Por isso criei uma espécie de conto de fadas, para levar a Mina para o interior daquela casa. Para libertar a personagem da Alma tive a ideia de colocar um pouco mais da história dela, que me faltava.
Em que sentido fala de conto de fadas?
É por causa da solidão da Alma que ela abre as portas de casa, como num conto de fadas, é o que sinto. Não é tanto o cenário, que é uma casa florida, é como o túmulo de um faraó egípcio, com toda a sua vida passada. A abolição das classes sociais é apenas a entrada em casa da Mina e dos filhos, com quem a Alma brinca. É só uma forma de expressar a sua solidão. Foram mais dois anos e meio de trabalho. Sei que sou muito lenta.
O filme ironiza com os clichés, como na cena em que Mina chega a meio da festa e todos pensam que é a nova criada…
Essa cena não é totalmente realista. Há umas cenas que são naturalistas, outras que não são. Mas essa é quase como uma cena de Buñuel, é totalmente barroca. Precisava de cenas como essa que chamassem a atenção. Mas antes da entrada da Mina, já víamos como a Alma se sentia uma estranha no meio dos seus amigos.
Já tinha feito o “Saint-Cyr” com a Isabelle Huppert. A sua relação com ela mudou com este filme?
Ajudou ter trabalhado com ela antes porque aceitou ler o guião logo de seguida. Mas os dois filmes são tão diferentes. O primeiro era uma grande produção, um filme de época, com imensos figurantes. Este é um conto de fadas contemporâneo, como uma fábula. A diferença é que agora conheço a Isabelle como pessoa e sei que pode ser muito simpática e divertida. É um aspeto dela que não vimos muito e por isso quis colocar isso na Alma.
O André Téchiné fez pouco antes um filme com a Isabelle Huppert e a Hafsia Herzi, “Os Novos Vizinhos”. Não receou voltar a coloca-las juntas logo de seguida?
Quando contratei a Hafsia não sabia ainda do filme do Téchiné. Achei apenas que era uma boa ideia pô-las juntas. Ainda estávamos à procura de financiamento, mas depois, quando soube, decidi mudar a Hafsia para o meu filme, fisicamente. Dar-lhe um pouco de peso, pô-la de saltos altos.
Como descobriu as crianças para o seu filme?
Andei por Bordéus a fazer castings. Ao princípio queria duas crianças que fossem mesmo irmãos, e tinha várias opções, mas apaixonei-me pelo rapaz. Só que a irmã mais velha não era tão interessante. Filmámos em outubro e em junho tinha seis crianças e não sabia qual escolher. E as crianças mudam tão rapidamente. Podemos ter uma criança magnífica em junho e em outubro estarem completamente diferentes. É no verão que crescem mais.
Como trabalhou então com as que finalmente escolheu?
De junho a setembro todas as semanas, trabalhava com eles, brincava com eles, comíamos gelados. No final de agosto soube que ia ficar com o rapaz. No filme não são eles que transportam a história. São o tesouro de Mina. Trabalhar com eles foi cuidar deles, e não tinha nada de muito difícil a pedir-lhes. O mais difícil foi que, sendo tão pequenos, ele tinha 4 anos, ela 8, a lei não permite tê-los mais do que três horas por dia para filmar.
O seu processo de fazer filmes mudou ao longo dos anos?
Tenho uma equipa fantástica, não se faz um filme sozinha. Agora é mais fácil porque tenho pessoas à minha volta que me conhecem, e que eu conheço. O trabalho no plateau é mais rápido. Mas tenho sempre receio de fazer qualquer coisa que ainda não tenha feito. A dúvida é uma ferramenta muito importante, porque nos mantém atentos.