
"A desobediente" é o quarto projeto biográfico de Patrícia Reis
Foto: Leonardo Negrão / Global Imagens
Autora da biografia de Maria Teresa Horta, "A desobediente", Patrícia Reis considera que a amizade com a poetisa foi um elemento importante durante o processo de pesquisa e de escrita do livro.
Corpo do artigo
Foram mais de três anos dedicados à pesquisa e escrita sobre a vida de obra de Maria Teresa Horta, agora culminados com a publicação da biografia, já na terceira edição.
Ao JN, a escritora defende que a objetividade do biógrafo é "um mito de grande dimensão".
Já era próxima da Maria Teresa Horta mesmo antes de escrever esta biografia. Foi uma vantagem ou nem por isso?
É um privilégio ser amiga da Maria Teresa Horta, é conviver com um pedaço da História. Para este trabalho, foi preciso encontrar o fio de equilíbrio entre o facto de sermos amigas e sermos também a biografada e a biógrafa. Um trabalho desta natureza implica alguma sensibilidade já que a biografada está viva e é colaborante. A nossa amizade foi muito vantajosa, porque confiamos uma na outra. Essa confiança foi essencial.
A objetividade do biógrafo é um mito?
Para mim, é certamente um mito e de grande dimensão. Não creio que possam existir biografias isentas de afecto. Esta é, decerto, uma biografia contaminada pela relação de amizade que temos. Uma biografia dita científica seria construída de uma outra forma, não tenho a menor dúvida. Dito isto, creio que a tarefa de escrever uma biografia implica sempre respeito pelo biografado. Trata-se de tornar público um percurso de vida com as suas vicissitudes. Neste caso, o meu trabalho misturou a minha função de escritora com a de jornalista. A Teresa percebe muito bem isso, também ela é jornalista.
O título faz referência à capacidade que a Maria Teresa Horta sempre teve de saber dizer “não”. O que acha que ela perdeu, em termos de reconhecimento, devido a esse lado visto como insubmisso?
A Maria Teresa Horta é, há décadas, uma voz ativa a favor da luta pela paridade e igualdade. É feminista mesmo antes de o termo se ter banalizado. Essa convicção feminista implicou sempre uma luta, uma defesa, um discurso. Esse aspecto não a favoreceu junto da academia ou da crítica. Portugal não vê com bons olhos uma mulher que se expressa livremente, que não é submissa, que chama os bois pelos nomes. É uma realidade que incomoda. A Teresa foi prejudicada em muito, nomeadamente na atribuição de prémios e na possibilidade de internacionalização da obra.
Acredita que a sua biografia nos dá mais elementos para compreendermos não só a sua vida, mas também obra?
Acredito que a biografia comprova que a vida da Teresa foi transpostada em larga medida para a sua poesia e ficção. Os acontecimentos de vida mais marcantes tiveram uma repercussão literária evidente. Ao mesmo tempo, o que deixou cicatrizes muito cedo explica as opções de vida da Teresa e muita da sua personalidade.
Foi feita a devida justiça à luta que MTH sempre travou pela dignificação do papel da mulher na sociedade?
Creio que somos devedoras do trabalho pioneiro da Teresa e de outras feministas. Não consigo abordar a questão do ponto de vista da justiça, pela simples razão de que as mulheres continuam a ganhar menos 13% que os homens, só 23% ocupam cargos de direcção em empresas nacionais, e das 22 pessoas assassinadas em Portugal no ano passado, 19 eram mulheres. Isto significa que o caminho do feminismo ainda tem muito para desbravar, apesar de termos feito várias conquistas.
Numa vida tão marcada pelo sofrimento como foi a de MTH, qual a importância que teve (e tem) a escrita?
A escrita é salvadora. É um instrumento de terapia. É uma forma de expressar dor e de se interrogar. Acredito que Maria Teresa processa a vida através da escrita. Ainda hoje, escreve. É quem ela é.
Não é ainda muito comum vermos biografias dedicadas a figuras que estão entre nós. É sinal de que o país já cuida melhor dos vivos e não espera que elas morram para lhes prestar loas?
O reconhecimento de Maria Teresa Horta tardou. Chegou muito mais tarde e numa altura em que ela não pode desfrutar como outros escritores que obtiveram prémios, loas e homenagens a tempo de as gozar. É triste, mas, de novo, é o caminho que Teresa trilhou quando optou por não se deixar contaminar pelo silêncio sobre as causas em que acredita. Ainda bem que fez essa opção.
Ao fim de quatro biografias, sente que já conhece o género por dentro?
O que posso dizer é que cada biografia comprova que um dos grandes fascínios da minha vida enquanto jornalista é ouvir o Outro. Gosto de escutar as histórias de vida das pessoas, de compreender como a sua identidade foi marcada por terminado acontecimento e, ao mesmo tempo, vislumbrar uma possível identificação. Não me considero uma biógrafa, mas uma escritora que, por acaso, é jornalista, uma profissão que é também uma identidade.
