Veterano cineasta fala do seu último filme, o drama erótico-religioso "Benedetta".
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Primeiro foi a produção interrompida por um grave problema de saúde do realizador. Depois foi a pandemia. Mais de dois anos depois do fim das filmagens, aí está nas salas "Benedetta", baseado na história verídica de uma freira italiana do século XVII que tem visões de Jesus e mantém uma intensa relação sexual com uma jovem que o convento acolhera. Realizador de clássicos como "Instinto fatal" e "Robocop", Paul Verhoeven falou com o JN pouco após a estreia mundial do filme em Cannes.
Como é que se sente agora que o filme foi finalmente visto?
Foi um período muito difícil. Quando estava a assistir à estreia do meu filme, o meu olhar era quase de um alienígena. Sei que é um filme que muita gente vai gostar e muita gente não vai gostar. Há elementos no filme de que não nos damos conta quando filmamos, e de que agora toda a gente fala, como o brinquedo sexual.
Não estava à espera que se falasse tanto nessa sequência?
A figura da Nossa Senhora que se transforma num pénis faz-me lembrar a cena em que a Sharon Stone cruza as pernas em "Instinto fatal". Quando fizemos essa cena pensávamos que não era nada de especial. Mandámos quase toda a gente sair, filmámos, vimos que ficou bem e nunca mais falámos nisso. Mas 30 anos depois ainda é um problema.
Já escreveu um livro sobre Jesus Cristo, que neste filme aparece nas visões de Benedetta. Foi também o que o interessou no projeto?
Eu sei muitas coisas sobre Jesus Cristo. Há 15 anos que estou a estudar a sua vida. Mas o Jesus de Benedetta não é o meu Jesus. As visões dela estão no livro em que o filme se baseia, não inventei nada, só mudei pequenas coisas.
E o pénis, também estava no livro?
Não, isso fui eu que inventei. Antes havia uma lei que dizia que se uma mulher tivesse sexo com outra mulher deveria ser queimada. Mas em 1625 a lei fora mudada, dizendo que se uma mulher usasse um instrumento com outra mulher, devia ser queimada. Historicamente teria sido incorreto se tivesse ido para o cadafalso por ter sexo com outra mulher. E como tínhamos aquela imagem da Nossa Senhora...
Porque escolheu Virginie Efira como protagonista?
Foi baseado no que ela fez em "Ela". Aquela mulher católica romana que pede a toda a gente para rezar antes do jantar e que fala de Jesus. No fim descobre-se que sabe que o marido viola mulheres e tem uma relação sadomasoquista com ele. Se a Virginie pôde fazer aquilo, também podia fazer este filme. Nem sequer fiz nenhum ensaio, dei-lhe o guião e perguntei-lhe se queria fazer o filme.
Pode-se dizer que tem o seu tipo de heroína, mesmo desde "Delícias turcas", a loura fria e maléfica?
Hitchcockiana? Parece que é o caso, mas não sei porquê. A minha mulher não é loura. Não é nada de pessoal. Dizer que é uma abordagem artística talvez seja de mais. Não têm de ser louras, só quero que sejam capazes de fazer o papel. Que o queiram fazer e gostem de o fazer.
Preocupa-o ser criticado por ser um homem a filmar cenas de sexo entre mulheres, de ter o chamado olhar masculino?
As cenas estavam no guião, depois nos desenhos do storyboard. Toda a gente as viu e achou bem. Nunca mais houve discussão sobre isso. Ninguém achou algo de desagradável ou pouco apropriado. E para a Virginie e a Daphne não houve problema nenhum. Mas isto foi em 2018, muita coisa aconteceu depois. Até o facto de haver uma praga no filme. Não é profético, apesar de parecer.
Teve uma infância e juventude marcada pela religião?
Não, de forma nenhuma. Foi só aos 20 anos que me tornei membro da Igreja de Pentecoste. Durante três semanas! Vivi foi no meio de bombardeamentos. Quando a guerra acabou, tinha cinco anos, pensava que aquela era a vida normal. Tudo aquilo que eu vi durante a guerra fez com que tenha uma grande facilidade em lidar com a violência.
As cuecas de Sharon Stone
O famoso cruzar de pernas de Sharon Stone, depois de a termos visto tirar a roupa interior, em "Instinto fatal", é um momento icónico do cinema moderno. Paul Verhoeven recorda-o. "Mandei toda a gente sair, inclusivamente o Michael Douglas. Só fiquei eu, a anotadora e o diretor de fotografia. Antes de começar a filmar, ela tirou as cuecas e deu-mas, de recordação. É verdade. E eu dei-as à minha mulher. E ela lavou-as. Nunca disse isto, mas 30 anos depois já posso contar. A Sharon Stone ainda hoje tem problemas com o filme. As pessoas que a rodeavam achavam que ela tinha uma possibilidade de ser nomeada para um Oscar, e que até talvez ganhasse, mas que aquele plano o impediria. A verdade é que impediu."
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