Em Londres arranca a retrospetiva de Paula Rego. Em França, e um pouco por todo o mundo, celebram-se os 100 anos de Edgar Morin. No Porto aplaude-se o privilégio do acesso ao arquivo de João Fiadeiro e entra-se em estágio para as coreografias inspiradas em Louise Bourgeois. Em Lisboa aguarda-se a estreia do espetáculo de Raquel André.
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"Tu és uma inconsciente", gritava-lhe a mãe. "Ó Maria Paula", insistia, ampliando ênfase e volume, "tu és uma inconsciente. Fazes as coisas e depois ficas toda aflita". Ela, a Maria Paula, criança inquieta, com um mundo maior dentro da cabeça do que fora dela, embaraçada, sentia-se a diminuir de tamanho, qual Alice no país das maravilhas a encolher para entrar na porta enigmática do jardim mágico. "Tinha medo", diz a juntar as palmas das mãos, os olhos pendurados no ar. "Ai, Jesus, tinha tanto medo. Medo de tudo." E tinha oito anos. O tempo levou-lhe muita coisa. "O medo? Já não tenho tanto", confessava, aliviada, em 2004, à extinta Grande Reportagem (GR). "Mas ainda existe."
Maria Paula é Paula Rego, 86 anos que merecem a mais curvada vénia. Provocadora incansável. Perturbada e perturbadora. Pintora da solidão e do desespero, da frustração e do desejo, da liberdade e do encarceramento. Da melancolia. Da infância atravessada pela maturidade. Influenciada pelo surrealismo e, de certa forma, pelo dadaísmo, ela pinta o pecado que imagina, o arrependimento, o purgatório, a moral e a falta dela. Em figuras ambíguas, meio humanas, meio animais, meio bonecos, meio coisas que só ela saberá, denuncia o país de que se lembra quando era ainda demasiado pequena. O Portugal da mulher submissa, manipulada, da mulher sem norte, da mulher dona de casa. E, ao mesmo tempo, da mulher erótica, misteriosa, inabalável. Constrói e destrói a História numa dialética motorizada pela imaginação, numa encruzilhada de metáforas para as quais só ela conhecerá a chave exata. É a voz de quem não teve voz. A voz da consciência e da transgressão que, não raras vezes, emerge da força sexual das suas personagens. Paula Rego é um coelho. É uma formiga-rabiga. É a mulher-cão que rasga as convenções e explode em narrativas densas, carregadas de tudo menos inocência.
É a artista portuguesa que nenhuma instituição tratou tão bem como a Tate Britain de Londres, que a partir desta quarta-feira volta a dedicar-lhe uma retrospetiva chamada simplesmente Paula Rego. São mais de cem obras criadas entre 1950 - "O que eu pinto é triste? É cru?", interrogava-se nessa entrevista à GR. "Acho que não. Pinto a verdade. A Guerra Colonial existiu e foi uma vergonha. Faziam-se festas e, no fim, andavam aos pontapés às cabeças dos indígenas. As mulheres, em 1950, tinham vidas tenebrosas." - e 2010, o ano em que foi distinguida pela rainha Isabel II, com o grau de Oficial da Ordem do Império Britânico, pela sua contribuição para as artes.
Paula Rego mudou-se para Londres em 1952, vive ininterruptamente em Inglaterra desde 1974, e todos os dias continua a trabalhar naquele estúdio-lugar saído de um conto de fadas, onde se misturam galos de Barcelos com vestidos comprados na Royal Opera House. Do país onde nasceu merecia muito, muito mais. A exposição fica na Tate até 24 de outubro.
Outra vénia curvadíssima: Hoje é dia, também, de celebrar Edgar Morin, o antropólogo, sociólogo e filósofo francês que ajudou tantas gerações a pensar. O autor de dezenas de livros imprescindíveis (mais de 80), como "O Método" (seis volumes) ou "Cultura de Massas", completa 100 anos esta terça-feira e continua a dar entrevistas para guardar para a posteridade, provando continuar a ser um dos mais extraordinários pensadores contemporâneos. Numa entrevista ao diário espanhol El País, já em plena crise de covid-19, dizia:
"A pandemia, com as restrições que gerou, obrigou-nos a fazer uma saudável desaceleração. Eu próprio notei uma forte mudança no meu ritmo diário: já não é cronometrado como antes. Quando troquei Paris por Montpellier percebi logo uma notável mudança no ritmo dos meus dias. Mas agora, com maior consciência, estou (estamos) a reapropriar-me do tempo. Bergson entendera bem essa diferença entre o tempo de vida (o interior) e o tempo cronometrado (o exterior). Reconquistar o tempo interior é um desafio político, mas também ético e existencial."
No final de 2020, Morin publicou o livro "Mudar de via. Lições da pandemia" em que propõe um novo caminho para a Humanidade. Como esta: "A única resposta a dar àqueles que têm a medo de morrer é o amor e a vida em comum."
Terceira vénia: João Fiadeiro. Parisiense de gema, lisboeta de residência, coreógrafo e investigador com mais de 30 anos de carreira, decidiu doar o espólio integral de um trabalho que digrediu pelo mundo todo durante trinta anos (dele e de outros criadores e pensadores), e que se confunde com a história da Nova Dança Portuguesa, à Fundação de Serralves, no Porto. É muito comovente perceber que, de repente, podemos viajar no tempo e aceder a um conjunto valiosíssimo de obras que nos pareciam vedadas para sempre.
Muito mais nova, Raquel André, colecionadora, performer e criadora, prepara-se para estrear, entre os dias 16 e 18 de julho, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, um daqueles seus instigantes espetáculos. "Coleção de Espectador_s" encerra a tetralogia que iniciou em 2014, e através da qual tem construído um arquivo do efémero, de memórias e histórias de pessoas. Vale a pena passar aqui. O espectáculo é também um "elogio a todas as pessoas que contribuem para a realização de um evento artístico".
No Porto, é tempo de reservar as próximas três quintas e sextas-feiras para ir a Serralves, sempre às 20 horas, onde serão apresentadas três coreografias (trabalhos de Tânia Carvalho, Sónia Baptista e Ana Rita Teodoro) inspiradas na exposição "Deslaçar um momento" de Louise Bourgeois (1911-2010).
Tânia Carvalho é a primeira a apresentar a peça, já esta quinta-feira. Chama-se "Por Baixo de Mão" e traz com ela um poema:
tenho um fantasma dentro que só me vê por dentro
às escuras
o fora não há
tamanho medo e beleza fugaz com ele
corre
desaparece e eu estou lá
assim sem fim
o início fora de mão
eu por baixo da mão dele