Quando a pintora Paula Rego faleceu, a 8 de junho deste ano, "foi um dos momentos mais estranhos para que ela abandonasse a sala. Estava com uma grande exposição na Tate Britain (Londres) e percebemos que a pintura figurativa dela era única na sua geração e uma das maiores no mundo da pintura", teceu Philippe Vergne, diretor do Museu de Serralves, antes da inauguração oficial da exposição "Quem conta um conto...", ontem à tarde, na qual participou o primeiro-ministro, António Costa.
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A mostra conta com 21 trabalhos de Paula Rego, 20 destes em depósito ou pertencentes à coleção de Serralves, como é o caso do políptico "Possessão" e "The Sweeper", cedida por um colecionador privado. Os trabalhos estão balizados entre 1975 e 2004.
A primeira sala da mostra tem diversas gravuras, onde é recorrente a figura do cão e a sua dualidade, como explicou Isabel Braga, curadora: "o cão na obra de Paula Rego é um exemplo de obediência e fidelidade, mas tem também essa ambiguidade de ser capaz de agredir". Nesta fase, é possível observar como o desenho é a "espinha dorsal" do trabalho de Paula Rego. Obras como "Menina com homem pequeno e cão" são demonstrativas dessa ambivalência.
Nos anos 1980, a pintora entra numa fase em que a pintura em tinta acrílica, imagens muito coloridas e preenchidas com figuras antropomórficas ganham destaque, como é o caso de "Homenagem a Dubuffet", de 1985. Nesta sala está também patente "The Vivian Girls on the Farm", do mesmo ano, uma profusão de elementos.
profusão e foco
Depois de toda esta abundância, a década de 1990 é marcada pelo desenho a pastel, com obras mais despojadas, normalmente com uma figura central e com recurso a modelos vivos.
Isabel Braga contou que "uma das modelos mais usadas pela pintora foi Lila Nunes, a mulher que cuidava do seu marido, o pintor Victor Willing".
Lila é a figura central da obra "A cinta", demonstrativo da opressão a que as mulheres eram sujeitas, mesmo em ações quotidianas como as vestes, uma preocupação sempre latente na obra da artista.
Em Serralves está também em exibição "A Cela", de 1997 , inspirada pela obra "O crime do padre Amaro", de Eça de Queiroz. Uma das poucas obras onde aparece uma figura masculina, vulnerável, atormentada por uma pequena figura que dorme debaixo da sua cama. Uma referência à criança que o padre terá mandado matar, perdendo também a sua amada "Amélia".
Os direitos reprodutivos das mulheres, o aborto, o abuso de poder, e abuso doméstico das mulheres são transversais na obra de Paula Rego. Philippe Vergne diz que "Serralves consegue um fio condutor, um diálogo entre esta exposição, a de Cindy Sherman e a de Maria Antónia Siza (patentes em simultâneo), onde as mulheres estão em evidência em todos os seus estados de dor". Acrescentando que a coincidência forçada permite também "traçar uma outra linha, nas vésperas das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, em 2024. O que aconteceu na ressaca do autoritarismo? Que herança ficou?". Uma pergunta para responder até abril.v