Um universo pictórico onde se cruzam memórias pessoais e a literatura, o doméstico e o político, a compaixão e a crueldade. A mais conceituada artista portuguesa viva está de regresso à Casa de Serralves com a exposição monográfica "Paula Rego. O grito da imaginação". São 36 obras que percorrem 30 anos de produção e que mostram a evolução de um olhar ambíguo, impiedoso e visionário.
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Depois das mostras de 1988 e 2004, a celebração dos 30 anos da Fundação de Serralves serviu de pretexto para trazer de volta a artista radicada em Londres, apresentando-se uma seleção de trabalhos pertencentes à Coleção de Serralves (incluindo a primeira série de pinturas adquiridas, "The vivian girls on the farm", de 1984, que se inspirou no romance de Henry Darger "The realms of the unreal"), e ainda um conjunto de dez gravuras do espólio da Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais.
Os principais eixos da mostra, segundo a comissária Marta Almeida, são a "capacidade da arte para questionar o quotidiano, problematizar o papel da mulher na sociedade e revelar universos onde a surpresa e o espanto se ancoram nos mais básicos e fundamentais anseios do ser humano". A propósito dos trabalhos reunidos, Philippe Vergne, diretor do Museu de Serralves, considerou, durante a apresentação à imprensa, que se trata de "obras que não envelhecem", e cujos temas de "género, abuso e violência" continuam hoje a ser abordados pelos jovens artistas. "Sempre esteve muito à frente do seu tempo".
Do poder figurativo
Logo no piso de entrada, deparamo-nos com a série "Possessão", de 2004, que nos apresenta sete pinturas de uma mulher a contorcer-se num divã - uma situação algures entre o erótico, a sessão de psicanálise e o exorcismo, ou mais um exemplo, segundo a comissária, de uma arte que cria "cenas sem passado nem futuro". E também sem explicações, cabendo ao visitante especular sobre o que vê.
Junto às escadas de acesso ao piso superior, recuamos 30 anos, com "Corredor" (1975) e "A grande seca" (1976), obras que remetem para uma fase em que Paula Rego se dedicava a técnicas de colagem e recorte de imagens, e onde se evidenciava uma "violenta abstração surrealizante".
Subindo as escadas, avançamos até aos anos 1980, uma época de "máscaras". Aqui abundam os ecos dos contos populares e de fadas, surgindo figuras de animais com comportamentos humanos - território de metáforas onde se manifesta o olhar ínvio e perturbador de Paula Rego, sucedendo-se cenas onde é difícil apurar se estamos diante de brincadeiras ou tortura, ingenuidades ou pulsão sexual.
Com técnicas que vão da pintura em acrílico e guache (materiais dominantes nos anos 1980) à utilização do pastel (a partir dos anos 1990), a exposição revela o poder figurativo de uma artista que comenta a realidade social e política a partir de lugares íntimos e secretos.