Tânia Ganho constrói no seu novo livro uma poderosa evocação literária da figura paterna.
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A morte é um território fértil de criação literária. Mas essa abundância nem sempre se traduz em algo mais do que um mero exercício introspetivo – embora legítimo – através do qual o autor procura cauterizar a sua dor. Quando às virtudes terapêuticas se alia a formulação verbal fecunda, acontece literatura, esse território de acesso restrito e tão único, quer para o autor quer para o leitor.
Embora breve, “O meu pai voava” ascende a esse patamar. No seu regresso à publicação depois de “Apneia”, Tânia Ganho convoca a figura do pai, recentemente falecido, de um modo plural, mas sempre acompanhada por uma humanidade profunda, em que o enternecimento e as reflexões estão presentes.
“Cinturão negro de karaté, alpinista, astrónomo amador, inventor medalhado, médico extraordinário”, o homem, antes e depois de tudo o resto, é-nos apresentado como alguém cuja grandeza se alimentava da vida em todas as suas dimensões, mesmo as consideradas triviais, como se cada uma dessas ínfimas frações de que é feito um ser humano fosse absolutamente essencial para a construção e manutenção das restantes.
Por isso, a homenagem sentida ao seu pai que representa este livro é ainda mais significativa porque a escritora e tradutora rejeitou fazer uma divinização da sua figura, optando por um relato mais amplo a que não falta até o lado mais risível e despretensioso.
Do choque abrupto à lenta mas gradual assimilação da perda, a autora de “A mulher-casa” faz do processo de luto uma experiência partilhada na qual a revisitação da infância é porventura a trave-mestra. Ao olhar para o território de todas as perguntas (mas também deslumbramentos e descobertas) que é a juventude, Tânia Ganho encontra nessas memórias esparsas um possível caminho para sair do labirinto da dor.
Profundamente íntimo, o livro comporta uma contemplação sobre a condição humana. É através dessa democraticidade do luto, uma das poucas experiências capazes de unir pessoas diferentes, que o leitor de “O meu pai voava” faz também sua uma dor, à partida, tão distante.