"Que bom que é estarmos aqui todos juntos outra vez": como o fadista coreógrafo Jonas Lopes, de "Bate fado" comoveu o Rivoli, que aplaudiu vigorosamente de pé.
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Houve um momento no fim da peça, já passavam 100 minutos, estavam já os nove intérpretes nas vénias, abraçados a mesurar os seus sorrisos esticados, todos a bater o pé, em que os microfones permaneceram ligados e os ouvimos excessivamente a arfar.
Foi sobretudo Jonas Lopes, o revelado fadista cantor, que é também investigador, autor e coreógrafo da peça "Bate fado", juntamente com Lander Patrick, e esse momento pareceu demasiadamente humano.
Mas depois Jonas, todo vestido de negro, os tacões, a cara e o peito ainda a latejar, disse isto, uma constatação extraordinariamente vital: "Que bom que é estarmos aqui todos juntos outra vez!".
Foi aí que a frase, atirada ao ar a arfar, pairou por um momento, materializou-se e logo pluralizou, correndo depois pela plateia, aberta e esparramada, e acabou colada ao coração como um coágulo emocional, cheia de inflamação. Imediatamente a seguir foi embalada na cascata de palmas que eclodiu e pôs o Teatro Municipal Rivoli, que estava esgotado na noite de estreia ao vivo, a dar vivas bravas de pé.
Foi naquele momento primordial, ainda antes do encore do "Fado Hilário" entoado numa penumbra de carmim, os intérpretes na boca da cena, do lado de cá da cortina encantada, Jonas a recitar palavras terríveis de desejo e fé ("Ai, eu quero que o meu caixão/ tenha uma forma bizarra,/ a forma de uma guitarra,/ ai, a forma de um coração"), que percebemos de novo, ali todos juntos, o Teatro reaberto este ano pela primeira vez, o modo terrífico como estamos agora a viver - e que sem arte só desvivemos.
Essa constatação - sem o Teatro somos ilhas sem sermos arquipélagos, não possuímos pontes para lado nenhum - não é menos violenta do que o desmesurado abuso de tudo aquilo que estamos a perder, encarcerados na solidão de uma pandemia que nos varre a vida e nos esconde debaixo do tapete de existir.
Por isso, perante um tão franco "que bom que é estarmos aqui todos juntos outra vez!", não sabemos reagir de outra forma que não seja infinitiva e pormo-nos luarizados ou a chorar.
Um OVNI vindo do passado
Foi perante a banalidade daquilo que há 13 meses era normal - um teatro cheio com pessoas a assistir - que nos agitamos agora assim: exaltados, cheios de alegria e prazer, todos alvoroçados e febris pela transcendência do banal.
Foi "Bate fado", nova criação dos coreógrafos iconoclastas portugueses Jonas & Lander, peça de abertura ao vivo do 5.º DDD - Dias da Dança que continua até dia 30, que provocou tudo isto.
A peça é praticamente ovniológica. Híbrido entre a dança e o concerto, o espetáculo faz uma investigação de arqueologia futurista sobre essa tradição perdida há séculos passados que é o fado batido, isto é, dançado com a percussão vigorosa dos tacões.
Parece tratar-se, diz a História, mais de uma coreografia de exibição de virilidade entre homens de tabernas e prostíbulos do que propriamente de uma dança, mas haverá muita similitude com os passos do flamenco, do fandango ou do lundum, uma batucada importada da África ocidental.
Como agora aprendemos, a coreografia é executada por um batedor que sapateia no centro de um pequeno círculo de homens. Aproximando-se progressivamente deles, sempre a rodar, desfere-lhes golpes de peito e de pélvis, num toca-e-foge de sinuosa provocação. Os pés sucessivamente batidos reinventam a música, acrescentando-lhe o eco que ribomba da percussão. A coreografia acelera e desacelera, o batedor pode ceder o seu lugar a outro batedor com mais excesso de vaidade, batiam-se vigorosamente palmas e havia sempre gritos de excitação. Outros batedores metiam as guitarras ou as violas aos ombros e usavam-nas como armas de acicatar e metralhar.
Como arqueólogos que querem regressar ao futuro, Jonas & Lander iniciaram agora a reabilitação do fado batido. E, ou muito nos enganamos, ou acabamos de assistir ao mais importante gesto deste século pelo seu recobro e regeneração.
Para quem perdeu o imperdível, "Bate fado" tem mais três récitas no DDD, agora na sala virtual do festival (bilhetes a 3,5 euros), dias 23, 24 e 25 de abril de 2021.