Uma nova versão de “O Conde de Monte Cristo”? Os clássicos são assim, universais e intemporais e à espera do olhar das novas gerações.
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Os mais de nove milhões de espetadores só em França dão ideia do sucesso da operação e da qualidade do filme corealizado por Alexandre de la Patellière e Matthieu Delaporte. No elenco, e por entre alguns nomes conhecidos do cinema francês e europeu, como Anaïs Demoustier, Anamaria Vartolomei ou Pierfrancesco Favino, destaca-se Pierre Niney. Membro da Academia Francesa e veterano já dos palcos e das telas francesas, o ator interpreta a icónica personagem criada por Alexandre Dumas, Edmond Dantès.
O livro de Alexandre Dumas é um clássico da cultura francesa. Há algo de intimidante ao interpretar esta personagem?
O livro é muito conhecido em França, sim, mas fiquei surpreendido com tanta gente de outros países que o conhecem ainda melhor do que eu. É fantástico. Decidi não colocar muita pressão sobre os meus ombros, até porque tenho já muita experiência no teatro, onde interpretei personagens que são muito conhecidas dos espetadores. Do repertório de Shakespeare, Molière, Corneille ou Racine. Não ponho essa pressão sobre mim.
Não foi então um peso, para si.
Pelo contrário, foi fascinante descobrir que tanta gente adora o livro. Por isso, tentei também ser fiel à energia e à mensagem do livro, ao mesmo tempo que fazíamos uma adaptação e uma versão moderna. É claro que há pessoas que vão ficar dececionadas, outras vão ficar fascinadas. E os mais novos vão descobrir a história. Mas não é o livro, isto é um filme. Outra abordagem artística, com outra dramaturgia.
O livro já foi adaptado tantas vezes ao cinema. O que encontrou no argumento que o fizesse ter o desejo de participar no projeto?
Há o lado negro e trágico da história que, na minha opinião, não foi completamente contado nas outras versões. Esta versão mergulha mesmo no lado mais sombrio do livro. Explora o que há de melhor e de pior no coração do ser humano. Gosto desse lado trágico da história e esta adaptação vai muito longe nesse sentido.
A transformação física de Dantés é uma das novidades desta versão.
Foi feita de forma muito realista, de forma a que as pessoas não o reconheçam quando regressa para se vingar. Não há nenhuma adaptação que jogue a fundo neste aspeto. Havia sempre ou um nariz falso ou uma peruca. Percebíamos logo que era o mesmo ator. As pessoas aceitavam, mas achámos que podíamos ir mais longe.
Como é que se preparou para o papel?
Gosto de interpretar personagens que tenham uma exigência física. Também me ajuda a preparar mentalmente para o papel. É como uma dádiva, poder aprender outras coisas graças ao meu trabalho e encontrar pessoas que não poderia conhecer de outra maneira.
E mantem-me perto da personagem. Para este filme tive de aprender a andar a cavalo, esgrima, apneia, o que foi de uma enorme ajuda para me poder colocar na pele de Edmond.
A apneia deve ter sido a parte mais complicada da sua preparação.
Trabalhei com o Stéphane Mifsud, o campeão do mundo de apneia, que já fez onze minutos e meio em apneia estática. No meu caso, tinha de fazer imensos movimentos na água, o que faz o oxigénio desaparecer mais rapidamente. Tive de me preparar imenso.
Até onde é que conseguiu chegar?
No mesmo dia, com a ajuda dele, passei de um minuto e quarenta para três minutos e quarenta. Três ou quatro truques foram suficientes, toda a gente o pode fazer. Era muito importante, porque as cenas da fuga tinham de ser o mais claustrofóbicas possível, para que os espetadores sentissem ao máximo a tensão.
Estava nervoso, antes de fazer a cena?
No dia da rodagem comecei a sentir que talvez fosse perigoso, mas acabei por adorar fazer essa cena. Gosto de me preparar dessa maneira para os filmes que faço.
O que pensa que faz com que esta história seja tão universal e intemporal?
Todos nós temos o sentido do que é justo e do que é injusto. Começa na escola, quando por vezes nos acusam de termos feito qualquer coisa e não fomos mesmo nós. Mais tarde, pode ser na vida profissional ou na vida amorosa. E, de uma forma ou de outra, temos o sentido da vingança, em diferentes níveis claro. É um sentimento humano, no fundo. E por vezes percebemos, num determinado período das nossas vidas, que esse sentimento de vingança pode ser tóxico.
E o cinema está repleto de histórias de vingança…
A vingança é um motor muito forte para muitas histórias. Podemos pensar em westerns, nos filmes de Tarantino ou Clint Eastwood, e tantas outras histórias. As pessoas gostam de histórias de vingança. Mas o que eu gosto em “O Conde de Monte Cristo” é que não é só sobre vingança, mas sobre como a vingança nos pode envenenar. E sobre a fronteira entre ser um vingador pela justiça e transformar-se num monstro.
Não só interpreta diferentes idades da personagem mas também se desdobra em outras personagens.
Foi muito divertido. De início era assustador, porque tinha de me organizar para encontrar as vozes, o corpo, a maneira de andar, de comer, de falar. Tive de criar um sotaque inglês, para Lord Halifax. Todos os dias eram divertidos. Quantas vezes na vida é que vou ter a possibilidade de interpretar quatro ou cinco personagens diferentes bum único filme. Foi uma verdadeira dádiva.
Ser pessoas muito diferentes é uma das dádivas de ser ator, não?
É muito salutar ter de ser alguém diferente. Acho que tenho muita sorte em fazer este trabalho. Tem algo de terapêutico. Por vezes as pessoas perguntam-me se não sou um puco louco por interpretar personagens tão diferentes e por passar da comédia ao drama. Mas é isso que é fascinante. É tão frustrante ter de ser sempre a mesma pessoa. Detestaria,
Esta história já foi adaptada por realizadores estrangeiros, ser por franceses dá-lhe maior credibilidade?
Diria que sim, que é verdade. Talvez seja chauvinista, mas quando vejo adaptações feitas por americanos ou ingleses fico sempre de pé atrás. Encontra-se sempre uns clichés aqui e ali. Só nós conhecemos bem a alma dos franceses. Não somos super-heróis. Somos heróis devastados. É isso que é o Conde de Monte Cristo. Deus ou o Diabo, ninguém o sabe. Eu gosto de personagens assim.
Como é que foi ser dirigido por dois realizadores?
Essa foi uma das minhas primeiras preocupações. Não sabia como é que ia acontecer. Mas finalmente acabou por se passar muito bem. Quando acabam uma cena deixamos de os ver durante algum bocado. Vão discutir como é que ficou. Por vezes, uma cena não estava a resultar com o que um deles dizia e o outro aparecia logo com uma outra solução. Mas nunca entraram em desacordo à frente dos atores ou da equipa, nos 88 dias que durou a rodagem.
O Pierre é já um veterano do cinema e do teatro, apesar de ainda jovem. O que representa para si a tradição do teatro e da literatura francesas?
Os clássicos ensinaram-nos tantas coisas. Aqui estamos a lidar com temas universais, como traição, amor e vingança. O que a história nos ensina é que há coisas que nunca vão mudar. É ótimo para um ator poder começar por fazer teatro. Interpretar é como falar com fantasmas. Há sempre fantasmas do passado, quando representamos uma peça ou fazemos uma adaptação dos clássicos. Há algo de terno e de infinito que nos fala. Gosto dessa ideia mística do meu trabalho.