Maya Ângela Macuácua, escritora moçambicana, foi uma das vencedoras do Prémio Fernando Leite Couto. Jurista na Radiotelevisão Alfa e Ómega e ativista da ONG Focus on Africa, quer contribuir para combater a corrupção nas escolas, onde todos os alunos passam de ano, pelo que muitos chegam à universidade sem saber distinguir as letras.
Corpo do artigo
De que fala o seu romance "Diamantes pretos no meio de cristais", vencedor do Prémio Fernando Leite Couto?
Conta a história, na primeira pessoa, de três mulheres, de três épocas diferentes, e de três lugares diferentes, com culturas diferentes, mas que têm em comum o facto de serem negras. Os cristais são as diferenças, as circunstâncias, os conflitos, as conquistas. A primeira história é de uma norte-americana, a segunda de uma sul-africana e a terceira de uma moçambicana. Foi necessário estudar um pouco, mesmo sobre Moçambique, um país com 11 províncias e mais de 15 línguas e dialetos.
Quando era pequena, lia os livros que encontrava na estante do seu pai, alguns em língua inglesa.
Li muitos em inglês e percebi um pouco mais sobre a cultura norte-americana e sul-africana, porque não havia muitos autores moçambicanos. Só aprendi que existem autores moçambicanos na escola. Também na televisão havia mais canais norte-americanos e do ocidente do que dos canais nacionais, que ainda estavam em crescimento. É por isso que os jovens são mais levados por aquilo que vem de fora do que por aquilo que vem de dentro. O que vem de dentro, e agora falo de educação, nem sempre é tão aprazível.
Sofrem mais influências do exterior do que do vosso próprio país?
Sim. Demorou muito tempo para o moçambicano de Maputo falar à vontade a sua língua xangana, bitonga ou ronga, porque se achava que as pessoas iam olhar mal para nós. Já havia uma discriminação interna, porque os nossos pais incutiam-nos que o melhor era falarmos português. E fomos sendo influenciados por aquilo que vem de fora. Só agora há mais liberdade para as coisas da terra. É um pouco complicado perceber esse amor à pátria, mas ainda gostamos de coisas que vêm de fora.
Essa influência é exercida, sobretudo, nos jovens?
Os mais velhos têm muitas tradições e verem uma nova cultura é um choque para eles, assim como foi o colonialismo. Verem as crianças a mudarem os seus hábitos e costumes, além do que foi ensinado pelos portugueses, também é difícil para eles. Por exemplo, o uso da saia curta, no sul, é comum. Na zona norte, não se pode usar. É tipo Arábia Saudita. Lá falam-se mais dialetos e no sul ainda há muita influência dos sul-africanos. Não é fácil um jovem identificar-se com o seu próprio país. Curiosamente, o norte do país é onde há mais recursos, riqueza, flora, fauna. Preservam as tradições, o que o português foi lá colocar, aquilo que aconteceu lá. No sul, estamos a esquecer a nossa história, a nossa cultura.
Isso pode gerar conflitos entre as pessoas do norte e do sul?
Sim. Estamos divididos por culturas, por línguas. É certo que somos ricos, mas não somos tão ricos assim para reconhecer alguém como nosso igual. A época colonial teve coisas boas e más. Famílias brancas e negras sofreram. O que me deixa mal é ver Moçambique dividido, porque não falamos a mesma língua, não temos possibilidade de casar com alguém do norte, porque a cultura é diferente. Quem divide, devia fazer mais para unir, mas não faz, porque pensa que Maputo é Moçambique, e Maputo não é Moçambique. A guerra está no norte, a riqueza está no norte, só que as pessoas de lá são esquecidas. Moçambique é norte, é centro, é sul.
Como é que se pode unificar o povo?
Há uma má distribuição da riqueza. Tem muito a ver com o sistema de governação. Passamos muito tempo a aprender sobre a libertação do colono e do colonizado, e esquecemos quais os mecanismos para os moçambicanos unirem os povos. Samora [Machel] disse que é melhor unificarmos Moçambique pela língua, só que a língua não é suficiente. São os costumes. O norte é muito conservador e o sul é mais calmo. A melhor estratégia é ensinar isso nas escolas, e também não investir somente em recursos, como gás e petróleo. Por que não investir em famílias que não têm nada? Ainda temos um mundo desigual. Há famílias que moram em lugares ricos, têm madeira, mas as escolas não têm carteiras. Por que não arranjar forma de distribuir de uma forma justa os recursos que temos, para garantir que uma criança possa estudar da melhor forma? Possa aprender a língua materna, o português, possa olhar para um branco como igual, e não como alguém estranho?
Esse pensamento é predominante em Moçambique?
Quando vim para Portugal há muito tempo, achei estranho, e fiquei muito tímida, por vir para uma terra com pessoas que não conhecem os meus costumes. É sempre um choque quando se conhece algo novo. Somos seres humanos dados a preconceitos. Mas, ao invés de pensarmos tanto, porque não nos sentamos com a pessoa e procuramos saber qual é a cultura dela? Vamos perceber que somos iguais, mas também temos diferenças. É bom olhar para a pessoa diferente com curiosidade.
Após a entrega do Prémio Fernando Leite Couto, agradeceu a herança deixada pelos portugueses em Moçambique, nas estradas e nos monumentos. Porquê?
Os primeiros livros que li foram livros de História, que normalmente retratavam as culturas antigas, de povos europeus e africanos. Gosto de perceber o mundo. Não o disse por estar em Portugal, mas por perceber que aquilo que construíram foi algo incrível. Maputo parecia a África do Sul. Naquela altura, não estávamos acostumados a viver numa cidade, saber o que são prédios, sinais de trânsito, estradas, monumentos, caminhos-de-ferro. O que construíram foi preservado na História, relata o nosso passado e a nossa ligação. O ser humano faz coisas boas e coisas más. Havia conflitos, mas estávamos no topo da produção de chá e de arroz. Então, por que abandonamos a agricultura e investimos no gás e no petróleo? Não faz sentido.
Houve um retrocesso?
Sim, está a ser um retrocesso. Entregámos as coisas aos estrangeiros e o próprio país não sabe que no norte há rubis e no sul há diamantes. Devíamos abraçar o que Portugal deixou. Porque é nosso. Não concordo com o ato de expulsar as pessoas que investiram naquilo. Expulsar alguém que sabe mexer numa máquina de lavar, se eu não sei mexer numa máquina de lavar? Vai ficar enferrujada. Quem sabia mexer era a pessoa que estava lá, que me restringia, mas posso pedir-lhe ajuda, para me ensinar e podermos sair a ganhar juntos.
Esse conhecimento não foi transmitido aos moçambicanos?
Não, não foi. Agora, estamos a perceber que devíamos ter sido humildes. Olho para o colonialismo como algo muito mau, mas vocês aprenderam algo de nós, e nós também aprendemos muito de vocês. É por isso que digo que temos a vossa herança, e vocês têm a nossa herança.
Disse que perceber a verdade é o que a estimula a saber mais e que gosta de a descobrir, por mais podre que pareça.
Ninguém gosta da verdade. A verdade é a parte que revela como o ser humano é, a parte que revela a autenticidade das coisas, a origem, como é que elas surgiram. As células são a parte mais complicada. Estudar algo que não se vê, mas que sabemos que existe. Mas é a coisa mais autêntica. A verdade ajuda-nos a perceber quem nós somos, o que é que estamos a fazer no mundo. No processo de escrita do livro, percebi que nós também discriminávamos. Quando alguém é HIV positivo, olhamos mal para a pessoa. Por conta do nosso desprezo, as pessoas percebem que não são nada. Como não são nada, é melhor acelerar o processo e desaparecer. Na verdade, fez-me perceber que as coisas nem sempre são bonitas, nem sempre são feias, mas são autênticas. Percebemos o que somos e como somos.
Durante a cerimónia de entrega do prémio, no FOLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos, o escritor Mia Couto disse que "isto é muito maior do que vocês pensam que está a acontecer nesta sala". Porquê?
Foi uma forma de dizer que vale a pena. Não precisamos de pensar que a nossa vida se limita a Maputo. Há jovens que pensam que o estilo de vida é só aquele que veem na aldeia, na vila, e não é, é muito mais do que isso. Não tem nada a ver com condições. O Geremias Mendoso [que também recebeu o prémio] vem de uma família humilde, mas está aqui. É muito mais para os moçambicanos perceberem que o sonho deles faz todo o sentido. As crianças que pensam que a vida é casar com 11 anos e ter um filho com 14 têm o direito de sonhar. Os casamentos prematuros acontecem no norte, no centro e em algumas regiões do sul. Não acontece só em zonas recônditas, mas também em comunidades mais avançadas.
Tem que ver com tradições antigas?
Sim, a tradição tem um grande poder em Moçambique. Se falamos contra a tradição, somos excluídos da sociedade. Mas a tradição está a mudar muito. Antigamente, o mais velho era considerado o curandeiro, o transcendente. Agora, são os filhos com 20 e poucos ou 30 e tal anos que acusam os mais velhos, os avós, de feiticeiros, porque simplesmente estão a ter crises financeiras e sentimentais em casa. A tradição está a ser muito mal compreendida.
Qual é o papel da escola neste processo?
A nossa falta de cultura e de valorização das coisas nacionais vem da escola, mas também da família. Quando esta centraliza a vida só naquilo que deve fazer, limita a visão da criança e do adolescente. Pode até cortar as suas próprias asas e decidir não ir mais à escola. Agora, quando o pai não quer que o filho cresça como ele, um camponês, que nem sabe escrever o seu nome, percebe que precisa de incutir no filho a importância da escola. Mas isso não é suficiente. A criança deve aceitar, mas tem de perceber porque é que tem de estudar. E quando percebe que a escola e estudar tornam tudo importante, irá fazer de tudo para alcançar os seus sonhos.
Como funciona a escola em Moçambique?
É obrigatória a partir dos 5 anos, só que a passagem é livre. As dificuldades que um aluno teve no ano passado provavelmente não vão ser superadas, porque não chumbou. Há alunos que chegam à universidade e não conseguem diferenciar uma letra da outra, não conseguem escrever bem em português. É muito grave. Muitos dos nossos professores estão envolvidos em crimes de fraude. Aceitam o dinheiro para deixar o aluno passar. Os problemas financeiros são tão graves que estão a entrar no sistema de corrupção. Não podemos culpar só os professores, porque o pagamento do salário não é suficiente, atrasa-se e as crianças precisam de comer. Mas isso não significa que a maior parte dos alunos das escolas públicas está perdida. Isso tem a ver com a decisão do aluno e com a relação que tem com o professor.
É uma pessoa inconformada?
Muito. Pergunto muito. Não consigo esconder uma indignação. Não posso deixar as coisas passar. Preciso de compreender. Às vezes, é mais fácil perguntar, porque é difícil encontrar a solução. Como é que podemos melhorar o nosso sistema educativo, que está tão podre, tão corrupto? Muitas moças vão para a escola e pensam que as pernas grossas e bonitas são um passaporte para passarem. E também há muitos homens que mergulham no mundo da prostituição, porque pensam que é a única solução. A prostituição feminina e masculina até nas escolas existe. As mulheres devem vestir-se bem, colocar perucas, colocar unhas, andar de saltos. Se não, são excluídas da sociedade, só porque não têm as mesmas possibilidades de alguém que se prostitui ou tem dinheiro.
Mia Couto disse que um escritor em Moçambique é quase visto como uma entidade divina. Como vai ter mais visibilidade, sente esse peso da responsabilidade?
Sim, sinto. Vou procurar não priorizar aquilo que vem de mim, porque também tenho os meus desejos, e dar espaço ao outro, àquele que não tem autoafirmação. Quando se tem dinheiro lá, é-se tudo. Mas para quem não tem dinheiro é difícil. Tenho de aprender a perceber as preocupações das pessoas, perceber por que razão o nosso país é como é. Dizem que os cursos que têm a ver com letras levam-nos à perdição, e que para sermos bem-sucedidos temos de entrar em contabilidade ou em algo que tem a ver com dinheiro. Se estamos mais ligado às ciências, temos de sair do país para sermos alguma coisa. Não quero ver isso. Quantos jovens sonham ser presidente, mas não percebem nada do estado económico e político do país? Para ser presidente tem de se ter dinheiro. É assim que nós vemos e nos educam. Quero mostrar aos jovens que a vida não é só cantar nas discotecas ou nos casamentos. Não é só entretenimento. É tratar dos problemas da sociedade. É difícil encontrar uma solução, mas temos de procurar. Quero mostrar às crianças e aos jovens que podem ser quem são, morar onde quer que seja, ter pais brancos, negros, mestiços ou muçulmanos. Podemos transformar Moçambique com a ciência e com a literatura. Podemos dar voz às mulheres, às crianças, às prostitutas. Basta aprenderem a respeitar o próximo, a reconhecerem os seus problemas e exercerem empatia. Nada é impossível.
Tem pretensões políticas?
Não, não é esse o meu caminho, mas envolver-me em ações humanitárias, aprender a exercer mais empatia. Quero compreender como é que alguém num dia é rico e no outro dia torna-se pobre. Ou como é que é pobre e amanhã se torna rico.
As desigualdades sociais preocupam-na.
Muito. Estou numa cidade onde a desigualdade não é só pela língua, mas também pelos transportes. Aquele que não tem dinheiro, apanha transportes públicos. Uma zona é bonita, outra é pobre. E achamos isso a coisa mais normal. Há ainda discriminação de mulheres para chegarem a certos cargos, e de pessoas que têm necessidades especiais. Cegos, paralíticos, surdos. O que é feito dessas pessoas? São muitas, só que são escondidos. Na minha vida, só vi um cego, na cadeira da Assembleia da República. Era deputado, músico e ativista social.
O que significou receber o Prémio Fernando Leite Couto?
Assistia à televisão e via muitas pessoas receberem prémios e distinções. Pela noite, olhava a estante do meu pai e observava os livros, grossos e finos, e pensava quem me dera ter aqui um livro meu. Tive a oportunidade de conhecer Portugal, conhecer histórias, conhecer pessoas que gostam de ler. É uma oportunidade que a fundação me deu para aprender com os outros, e não desistir. Vou voltar a reeducar-me, estruturar a minha visão e acreditar que sonhar vale a pena.