Novo EP de Vado Más Ki Ás foca-se na relação com as mulheres e desvenda o catálogo de sonoridades que se revelam na música urbana portuguesa.
Corpo do artigo
"Vi o mal de perto. O crime, a droga, o álcool e a violência. Era fácil afundar-me nessa vida. Mas escolhi a positividade, a luz, e foi sempre isso que quis transmitir na minha música". O discurso, entregue em rajadas e terminando sempre num arrastado "yee", é de Vado Más Ki Ás, um dos nomes centrais do rap crioulo, subgénero do hip hop que se desenvolveu na última década nos arredores de Lisboa, como o Bairro 6 de Maio, na Amadora, onde cresceu Vado por entre "Rosas e espinhos", título do seu último EP.
A biografia do jovem rapper, 26 anos, é exemplar do ponto de vista da importância do lar, da estabilidade do lar, e de como a educação é o melhor contrapeso a todas as dificuldades que o Mundo apresenta. "Tive uma educação bastante rígida, fundada no respeito e no amor pelos outros. Era isso que eu via a minha mãe fazer, no trato com os vizinhos e todas as pessoas. Era uma mulher guerreira, que teve uma vida dura, mas sempre me ensinou o respeito. A vida no bairro era complicada, mas dentro de minha casa houve sempre um ambiente saudável". Dessa dicotomia, desordem no exterior/estabilidade em casa, emergiu um homem com ideias claras e inclinado para o lado da luz: "Aquilo que dás é aquilo que recebes: se eu tivesse ido parar à negatividade, não me tinha tornado um músico, talvez um presidiário. Foi por espalhar positividade e educação que também fui respeitado e recebi coisas boas, não só no bairro, também fora dele".
Esse bem-estar com o Mundo, incutido na base, desviou Vado de sentimentos e temáticas comuns no rap underground - "nunca vi o racismo como algo que me afetasse, nunca vi qualquer diferença entre humanos" - e empurrou-o para atividades distantes do crime, como as provas de Mini GP, onde se fez amigo de Miguel Oliveira e Ivo Lopes, e para a música, que se tornou o seu único sustento a partir dos 24 anos. Ao seu bairro, já demolido, foi ainda buscar inspiração noutros rappers e numa certa ideia de comunidade que designa por "Más Ki Ás".
Elogio ao feminino
"Rosas e espinhos", que sucede a "Processo" (2021), encontra nas mulheres o seu tema central, sobretudo nas faixas "Segredos", "Nu ta perdoa" e "Mulata": está lá a memória da mãe, nesse elogio à fibra no feminino, mas também uma série de relações, ora tóxicas, ora saudáveis: "São as rosas e espinhos: há amor, paixão, esperança e alegria, assim como os problemas e as mágoas". Na sonoridade, Vado injeta as linguagens mais frescas que se revelam na música urbana, combinando trap, drill, afro house ou kuduro: "Tento não repetir estilos, invento coisas novas que façam sentir ainda mais a música. Dou a missão por cumprida quando consigo chegar a uma sonoridade nova, que possa incentivar as pessoas para o bem, nunca para o mal".
Depois de dois anos em que o país viveu em "depressão e isolamento" e percebemos que "não há lugar seguro nem controlo", o rapper, que foi atuando em países com menos restrições, como Suíça, EUA, Cabo Verde ou Guiné, quer retomar o pico em que se encontrava nas digressões de 2018/2019. A próxima oportunidade será no Campo Pequeno, em Lisboa, a 2 de abril, no contexto do The Gang Festival.