20 anos depois de o Porto ter sido eleito Capital Europeia da Cultura, o JN desafiou quatro protagonistas a fazerem uma viagem retrospetiva
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Depois de ter vivido longos meses esventrada, em obras de restauro e reconstrução do espaço público, no dia 13 de janeiro de 2001 a cidade do Porto, que vira recentemente o seu centro histórico elevado a Património Cultural da Humanidade, vestia-se de gala para receber o então presidente da República Jorge Sampaio e a Rainha Beatriz da Holanda, que desceu a rua Passos Manuel até ao Coliseu, para formalizar a abertura oficial da Capital Europeia da Cultura. Em Roterdão assinalava-se o mesmo acontecimento. As duas cidades estariam em foco durante doze meses.
Houve fogo-de-artifício japonês na Ribeira, animação e multimédia, a última tecnologia à época. Houve uma peça inédita de Mário Laginha com filme de João Botelho. E houve Pedro Abrunhosa acompanhado pelos músicos de Prince naquele que era ainda o Pavilhão Rosa Mota. A cidade era outra. Nuno Cardoso era o presidente da Câmara, Manuela de Melo a vereadora da Cultura e Manuel Maria Carrilho, um dos grandes responsáveis pelo acontecimento, o ministro da Cultura.
Nesse ano a cidade conheceu oito equipamentos culturais construídos de raiz ou recuperados, mais de 600 eventos e dois mil espetáculos que foram vistos por um milhão de pessoas. Mas teve também maratonas de obras - só na Baixa foram investidos 44 milhões de euros.
Em 2004, uma auditoria do Tribunal de Contas haveria de concluir que o orçamento da Sociedade Porto 2001 resvalou em toda a linha: na programação foram gastos mais 5,3 milhões de euros do que era suposto; nos equipamentos culturais, mais 4,6 milhões; e nas obras transferidas do programa Polis, mais 12,4 milhões nas obras. Ao todo, o investimento totalizou 226 milhões de euros.
Mas há outros números: a página oficial da Porto 2001 teve mais de 11 milhões de visitas e a iniciativa foi alvo de notícia 21 mil vezes.
Duas décadas depois de o Porto ter sido eleito Capital Europeia da Cultura, o JN desafiou quatro protagonistas - um dirigente, um comissário e dois programadores - para fazerem uma viagem no tempo, apoiada pelo discernimento da distância.
O que lhes ensinou o Porto 2001? (1) Para lá do que é material, o que é que existe na cidade que não teria sido possível sem o alvoroço dessa iniciativa? (2) Que obras ou projetos ganharam valor com o tempo? E quais perderam o sentido? (3)
Entre as críticas, prevalece um denominador comum: Rui Rio, o autarca que herdou a cidade mas desbaratou o legado, continua a ser acusado de ter feito uma gestão cultural "desastrosa".
Quatro protagonistas
Teresa Lago, presidente da Porto 2001
1. Em particular, a ver de perto a política e os seus meandros complexos. Permitiu também um contacto novo e mais profundo com a cidade e os seus habitantes, bem diferente do meio académico em que sempre tinha trabalhado. Mas, curiosamente, levou-me também a ver a Universidade de fora, e a melhor compreender a sua real influência.
2. Acima de tudo, a ambição partilhada de um Porto como cidade europeia, per si, sem o complexo permanente e redutor da comparação com Lisboa. E a afirmação da sua especificidade e a oportunidade de reafirmar o seu caráter único.
3. A maior parte dos projetos concretizados pela Porto 2001 mantêm o seu impacto
marcante na cidade. Quer os equipamentos culturais construídos de raiz, ou renovados, alguns dos quais se tornaram e permanecem ícones da cidade.
Mas também os espaços públicos renovados, que foram redescobertos como locais
indispensáveis à vivencia dos locais, e dos visitantes. Vários deles constituem ainda hoje como que a espinha dorsal da convivência na cidade. E isso é obvio da comparação entre as estatísticas do Turismo, pré e pós Porto 2001.
No seu conjunto, a Porto 2001 imprimiu à cidade um cunho de modernismo que
complementa, e valoriza de modo único e harmonioso, a outra valência do Porto como
cidade de património e tradição.
Para além do mais, o Porto não teve na sua história recente um investimento nacional com a dimensão do concretizado para a Porto 2001: mais de 220 milhões de euros, dos quais, mais de 2,5 milhões de euros de mecenato.
Miguel von Hafe Pérez, comissário para as artes plásticas, arquitetura e cidade
1. Acima de tudo a possibilidade de se trabalhar a excelência num contexto adverso, por via dos prazos extremamente apertados para a programação cultural, das quezílias político-institucionais e de uma cidade que se encontrava esventrada, dificultando a circulação do público.
O que foi concretizado, na mais diversas áreas, correspondeu à afirmação plena da cultura como eixo central de uma credibilidade e visibilidade internacionais sem precedentes.
2. A confirmação de uma apetência singular na cidade por tudo o que se destaque em termos qualitativos no plano cultural. Assim, o que verdadeiramente se conseguiu provar foi que a cidade poderia vir a ser entendida como um mapeamento expandido de produtores e recetores culturais que não se esgotavam em instituições como Serralves, o TNSJ ou o Rivoli.
O envolvimento de centenas de associações, museus, as universidades e o mais variado tipo de entidades viria a permitir cruzamentos inéditos entre patrimónios materiais e imateriais que o público soube reconhecer.
3. Permitam-me referir aqui dois casos particulares: quando programei a exposição "First Story - Construir Feminino/ Novas Narrativas para o Século XXI", comissariada por Ute Meta Bauer, tinha a noção da radicalidade da proposta. Passados vinte anos essa radicalidade mantém-se e é, hoje em dia, central no mainstream teórico e discursivo.
Por outro lado, uma aposta forte da minha área de programação era a ativação dos Ateliers da Lada, onde recebemos artistas que viriam a integrar a exposição "Squatters", co-produzida com Serralves. Depois de 2001 o executivo de Rui Rio decidiu alocar a estrutura a...uma associação de treinadores de futebol! Felizmente a Câmara muito recentemente reativou a ideia inicial, depois vinte anos perdidos.
Num registo similar, creio que o plano que nós tínhamos delineado para o Cace no Freixo em parceria com o IEFP acabou por se enredar num imobilismo entrópico que retirou a possibilidade desta estrutura se afirmar. É, certamente, uma das minhas maiores mágoas. O espaço é verdadeiramente singular, e uma maior rotatividade e verdadeiro apoio a estruturas residentes poderia ter tido um muito maior impacto no tecido cultural da cidade.
Jorge Campos, programador da Odisseia nas Imagens
1. A Porto 2001 ensinou-me que devemos ser mais contidos nos nossos objetivos. A programação era muito complexa e exigia coisas praticamente impossíveis, na relação com as escolas eram necessárias medidas para que as iniciativas tivessem solidez bastante, para caminharem por si próprias.
O problema foi que o programa foi de tal forma ambicioso que corria o risco de não ser cumprido. Mas foi, as pontes para o futuro foram lançadas, mas ainda estão a ser construídas. Querer muito pode ser um inimigo.
2. Como no poema de Konstantínos Kaváfis "Itaca" que relata a viagem de Ulisses, o mais importante não é encontrar Ítaca e regressar aos braços de Penelope, o mais importante é o percurso feito. Houve uma série de efeitos imediatos claros, a partir do momento em que a iniciativa existiu. O efeito regulador da RTP, as escolas, cursos de imagens e som do Porto com uma maior eficácia no documentário, na curta-metragem de ficção e na animação.
O programa falava para o que existia na altura: Cinanima, Curtas de Vila do Conde, e houve um boom de cinema documental. Com um grande envolvimento das escolas de imagem e som envolvendo em mais de uma centena de produções escolares : estudantes, ações e produções. Nesse sentido houve um impacto muito grande. Houve também uma programação de excelência na área do cinema. Uma opinião unânime, foi excepcional, mas foi efémera.
Era para ter continuidade no Festival Odisseia nas Imagens que não teve mas surgiram festivais como o Doc Lisboa e não há festivais atualmente que não contemplem a Academia. Os cursos também se atualizaram e prestaram outra atenção à imagem e ao cinema.
A produção escolar das escolas do Porto é excecional, designadamente na ESMAD, onde criei o mestrado em cinema documental e o Curso da Faculdade de Letras que foi desenhado integrando disciplinas de cinema. Houve também a produção de festivais como o Imagens Real imaginado, na ESMAE e o Black and White, na Católica que permitiram aproximar a escola da comunidade. A produção escolar é uma evidência.
A Casa da Animação foi o grande projeto da 2001, não como Abi Feijó a tinha pensado, mas funcionou com múltiplas valências. Mas houve um erro de cálculo, com o novo ciclo autárquico, tudo o que tinha transitado da Porto 2001 foi preterido. Rui Rio causou danos gravíssimos depois de uma experiência sofisticada como a Porto 2001.
Houve variadíssimas publicações com a Cinemateca Portuguesa: O olhar de Ulisses, livros interessantes e muitas produções que ficaram. Houve também fimes feitos de encomenda como o de Manoel de Oliveira, ou o centenário de Aurélio Paz dos Reis. Mas, com o erro de cálculo com a política foi o que se viu, o desfecho devia ter sido outro.
Passaram pelo Porto algumas das figuras mais importantes do cinema internacional e foram criadas muitas pontes com o Goethe Institut e o Institut Française, que depois também serviram para a lógica da Guimarães Capital da Cultura e o Doc Lisboa que é também um pouco a Odisseia nas Imagens. Assim como o festival do Dario Oliveira, o Porto Post Doc que trabalhou comigo. A viagem ainda não terminou.
3. A dinâmica escolar que existe é manifestamente devido a isto. A seguir houve uma autarquia que fez coisas impensáveis: um teatro municipal com uma companhia comercial. Confundir entretenimento com cultura não entra na cabeça de ninguém. Criaram a Porto lazer, um festival de francesinhas e corridas de automóveis.
A vida cultural sobreviveu graças aos seus agentes culturais e à sua resistência. As coisas voltaram a estar reforçadas, mas esse período de Rui Rio foi extraordinariamente grave. O entretenimento é legítimo, agora prescindir de uma política cultural é de uma extrema gravidade e não contribui para a projeção do nome da cidade.
Daniel Pires, programador do espaço Maus Hábitos
1. O Porto 2001 foi uma belíssima oportunidade criou a ilusão de uma sociedade diferente era possível e foram lançadas as pedras para criar algo. Mas depois percebi que tinha sido apenas um pequeno espasmo. Deu para perceber que a cidade tinha uma massa crítica latente que precisava apenas de um rastilho para existir, essa foi a aprendizagem de 2001.
E também que as campanhas de marketing das capitais da Cultura são fortíssimas e comunicam ao Mundo a existência da cidade. Os trabalhos com a comunidade que se realizaram, quer em 2001 quer depois em Guimarães, não tiveram nenhuma continuidade o que foi uma dura aprendizagem.
2. Os Maus Hábitos, ou seja o que ficou. Essa ideia de que a cultura alternativa faz-se pelos intermediários e não pelas instituições. Na prática só a partir daí existiu o Museu de Serralves e a Casa da Música só abre em 2005. Mas em 2021, essas grandes instituições que nascem da incubadora da Capital da Cultura não se completam. O STOP e os Miras tudo o que é trabalho privado cria mais tecido cultural na cidade.
E podia ser Serralves a ter acolhido essa comunidade artística. O João Fernandes e o Vicente Todoli tinham essa visão. João Ribas também teve essa missão de olhar para a coleção e ressuscitar alguns dos artistas, como o Silvestre Pestana.
A Casa da Música, também devia ter feito a mesma coisa. Além do serviço educativo, que é bom, nada neles é disruptor ou catalisador da comunidade artística do Porto e do Norte onde se insere. São os espaços intermediários como os Maus Hábitos: entre o Museu e a galeria, entre a garagem e a Casa da Música.
Esses espaços de viveiro, de incubadora que são fundamentais para a indústria musical. Só com a saída de Rui Rio e a entrada de Rui Moreira e a visão de Paulo Cunha e Silva é que a cidade regressou.
3. Os Maus Hábitos a singrar e a associação saco Azul sempre a crescer e a distribuir o dinheiro pelos artistas e projetos. Conseguimos sempre manter o espírito independente. A Casa da Música e Serralves diluíram a sua missão original e perderam o fio à meada, são projetos de gestão cultural.
Criam até um certo desconforto com as populações que suportaram essas instituições, parece que se querem divorciar da cidade. Aumentam os preços e têm exposições de catálogo de outros museus turísticos, desprezam aquilo que é nosso. Um mal que Portugal tem em si próprio, parece uma música sempre com o volume muito baixo, os artistas portugueses deviam ser amplificados.