Este fim de semana há ainda sessões de competição, mostra especial e homenagem à cineasta portuguesa Rita Azevedo Gomes. Oitava edição marcada pela diversidade.
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Apregoar valores e crenças que não se refletem em comportamentos torna a ação inicial vazia. Se há um espaço com mérito de não cair nesse vazio é o Porto Femme – Festival Internacional de Cinema, que se prolonga até domingo no Batalha Centro de Cinema. Os seus valores e crenças não precisam de ser apregoados, estão refletidos na diversa seleção cinematográfica, no ambiente de segurança e pertença vivido no certame e na facilidade em criar ligações àquelas e àqueles que lá marcam presença.
E mais do que ser um festival a trabalhar pela representatividade do cinema feminino – e, no caso da mostra especial desta oitava edição, do cinema lésbico –, dá um passo em frente: é um espaço para a autorreflexão, para a experimentação, para discursos variados, não caindo no vazio de colocar uma parte a representar um todo imensamente diverso.
Esta diversidade começa, como referido, na mostra especial. Intitulada “A história do mundo segundo uma lésbica”, pedindo o nome emprestado a uma curta-metragem de 1988, da realizadora norte-americana Barbara Hammer, ofereceu – a última sessão desta mostra acontece hoje pelas 19h15 – uma panóplia de visões cinematográficas sobre ou a partir de vivências lésbicas.
Experiência lésbica
E a seleção é tão genuinamente diversa que as caraterísticas comuns esgotam-se quase nisso mesmo: diversidade. Joana de Sousa, responsável pela curadoria deste ciclo, explica que o ponto de partida foi questionar-se: como é que a experiência lésbica pode influenciar a forma de fazer cinema? Daí, as criações são tantas e tão vastas, que “poderia passar um ano inteiro a programar cinema lésbico todos os dias”.
Mas o tempo é curto e, por isso, foi necessário filtro. Mais uma vez, entra a diversidade, sublinhando Joana de Sousa, também esta realizadora, a “intenção de trabalhar várias épocas, espaços, vivencias e geografias”. Numa mostra que apresentou desde “Superdyke meets madame X”, de 1975, um documentário que acompanha a relação, do início ao fim, das próprias realizadoras, Hammer e Almy, num retrato sem filtros e, por isso mesmo, cativante pela sua forma livre e experimental, do dia a dia; até “Dias de cama”, uma criação nacional de 2023, por Tatiana Ramos, que se destaca por uma montagem frenética e cheia de adrenalina. Entre estes, houve espaço para ficção, documentário, animação, amor, sexualidade, cenas mais ou menos explícitas, filosofia, política, entre uma miríade de experiências que não cabem em rótulos.
O filme de Barbara Hammer escolhido para dar nome ao ciclo funcionou como um “chapéu de chuva para todos os outros”, principalmente pelo lado experimental, uma caraterística comum no cinema lésbico. “Hammer, nos anos 1970, não tinha as imagens que queria sobre si, por isso, criou-as; nos dias de hoje não é diferente, estas realizadoras continuam a fazer cinema autorreflexivo em busca de ter imagens de si e das suas vivências que não veem em mais lado nenhum”, atesta Joana de Sousa.
É também esse caráter experimental que faz com que este cinema não tenha acesso tão certo a financiamento, acredita Joana de Sousa, afirmando que “o risco assusta os financiadores”.
Espaço para jovens
Em destaque na segunda noite do Porto Femme esteve uma produção húngara concretizada através de um financiamento particular: o Biennale College, uma bolsa de financiamento da Bienal de Veneza. “Árny”, a primeira longa-metragem de Dorka Vermes, é uma surpresa agradável pela maturidade que apresenta na sua primeira incursão para lá da curta-metragem.
Trabalhando com elementos complexos para uma grade produção de primeira vez – a maioria das cenas são de noite, tem muitos animais e um grande elenco –, é claro que Dorka, que já tinha passado com um curta-metragem pelo Porto Femme sete anos, é um exemplo do cinema de excelência que pode sair das “escolas” ou de bolsas semelhantes a esta.
Retratando a vida de Árny, um jovem que trabalha e vive com uma trupe de circo no limiar da pobreza e esquecimento, é também esta escolha por parte do Porto Femme um sinal da diversidade que carateriza o festival. Admite-o a própria realizadora: “apesar do meu filme ter um protagonista homem, foi selecionado, o que mostra que o festival é flexível” e, lá está, que busca diversidade.
Forte competição
Na competição internacional, destaque para os títulos “47 inches”, de Pascale Mompeza, “Blanche”, de Joanne Rakotoarisoa, e “Sea Salt”, de Leila Basma – sobre temáticas distintas na sua raiz, saúde mental, racismo e liberdade feminina, respetivamente, envolvem estas em narrativas complexas e profundas – não histórias planas e óbvias – que cativam o espectador e o fazer questionar, sem o moralizar.
Na experiência da jovem cineasta Dorka Vermes, mais do que no acesso ao financiamento, o género faz-se notar na rodagem. “Nas filmagens, como era a primeira vez que trabalhava com uma equipa grande que não eram apenas amigos ou conhecidos à minha volta, senti que havia maior tendência, por ser mulher, de questionar as minhas decisões.” Sobre o Porto Femme, diz sentir estar num ambiente agradável e seguro – “é incrível conhecer tantas colegas mulheres” – e, afirma, “seria ótimo se não fosse necessário um festival como este”, focado só no feminino, mas, infelizmente, “ainda é”.