
Micah mudou-se para Madrid: “A América é um país assustador”
Foto: Direitos reservados
Micah P. Hinson celebra hoje no Musicbox 20 anos do seu disco de estreia. “A idade traz-nos humildade e autocrítica”, diz o artista texano ao JN.
Corpo do artigo
“Passados vinte anos, continuo a escrever exatamente sobre as mesmas coisas: relações tortuosas e corações desfeitos”. É assim, intercalando vernáculo no discurso, que Micah P. Hinson analisa o seu tempo pessoal entre o presente e a época de lançamento do seu álbum de estreia, “Micah P. Hinson and the gospel of progress”, que será hoje tocado integralmente ao vivo no Musicbox, em Lisboa, numa data única no nosso país.
Houve quase unanimidade na receção ao álbum do texano, que impressionou pela dolorosa experiência de vida contida em versos escritos por um jovem de 22 anos. Inscrevendo-se na tradição folk americana, Micah reduz muitas das faixas a viola e voz, introduzindo noutras piano, acordeão, harmónica ou saxofone. A voz é trémula, esboroada, pungente.
E Micah fala de um tempo conturbado na vida do cantor: uma adolescência onde abundou o consumo de drogas (e a falsificação de receitas, o que lhe valeu a cadeia), a penúria e as “relações tortuosas” que sempre o perseguiram, como a que manteve com Melissa Berggren, ex-modelo da Vogue e viúva do guitarrista Wes Berggren.
“Quando saiu o disco efabulou-se muito”, diz Micah em entrevista ao JN. “Há coisas que foram verdade, outras foram inventadas. Subitamente, eu era visto como ‘fucking loser’, um desgraçado de um rapaz branco a procurar sentido para a sua existência. E era isso que contava, mais do que a música”. Olhando para trás, o artista reconhece que a escrita o ajudou a manter a sanidade nesses “tempos selvagens”.
E como pega hoje nestas canções, que celebram 20 anos? “O meu conhecimento técnico é diferente, relaciono-me com a guitarra de outra forma. E tinha a tendência a culpar os outros pelos meus infortúnios. A idade traz-nos humildade e autocrítica”.
Vem aí disco novo
Se os temas que aborda hoje não mudaram assim tanto, até porque os “infortúnios” continuaram – “tive um divórcio terrível durante a pandemia” –, já o Mundo à sua volta tornou-se quase irreconhecível passados 20 anos: “Saí do Texas, não estava lá a fazer nada. E mudei-me para Madrid, onde tenho uma companheira espanhola. É impressionante o que vês no metro: não há uma única pessoa a olhar em redor, tudo enfiado nos ecrãs. Creio que será um ato punk, hoje em dia, prescindir do telemóvel e olhar o Mundo”.
A grande mudança, para Micah, prende-se com o estado do capitalismo: “Estamos a deixá-lo entrar nas nossas vidas. Pessoas de todas as cores políticas estão a entregar de bandeja a sua privacidade às grandes empresas. Já ninguém se interessa pela realidade: uns vídeos giros e umas stories substituem o convívio e o afeto”.
E Micah fala a partir de Madrid, não dos EUA: “Não pretendo voltar tão cedo, e fiquei lá tempo demais. A América tornou-se um país assustador”.
No concerto de hoje, além de “The gospel of progress”, o cantor considera a hipótese de tocar temas novos no encore: “Acabei hoje o meu disco novo, ‘The tomorrow man’” –, que será lançado em outubro. Mas estabeleceu a sua condição para os tocar: “Tenho de ver como é que o público se comporta: se houver muitos telemóveis, ficam a ver navios”.
