Nomeado para o prémio Correntes d'Escritas 2015, com o livro "Aprendiz de dourado", Renato Filipe Cardoso confessa-se um apaixonado pelo caráter intimista da poesia. Ao JN falou sobre as suas influências, o percurso, a arte e os planos para o futuro.
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Para que é que não serve a poesia?
A poesia serve para tudo. Não há rigorosamente nada que não possa ser feito com poesia. Podemos arranjar o carro, fazer a revisão do carro, podemos lavar a loiça. Podemos escrever livros com poesia - coisa estranha - podemos preparar bebidas, podemos viajar. Podemos ser muito felizes e infelizes com a poesia. Podemos pagar impostos com a poesia. Podemos mandar a "Troika" à merda com a poesia. Podemos dizer à mulher a dias que gostamos muito dela. Podemos fazer tudo com poesia. A poesia serve para muitas coisas, e começa para servir um bocado como a nossa própria catarse, o próprio exercício intelectual, espiritual. Isto quando lemos. Quando escrevemos, funciona também como isso tudo, mas também como dádiva, comunicação. Estamos a dar algo de nós aos outros. E não há uma forma de escrever poesia. Até porque não há um leitor de poesia tipo. Essencialmente, a poesia é a sublimação daquilo que nos emociona. E quando digo sublimação, não é de ser sublime. É a tentativa do retirar do real e levá-lo para o lírico. E esse lírico pode ser imaginário, pode ser uma fabulação, mas isso não torna a poesia menos real, nem menos prática.
Ouça aqui um excerto áudio de um poema
A que influências foi beber?
O meu irmão mais velho, o Luís Cardoso, influenciou-me bastante, na medida em que ele lia muita poesia. Da mesma forma que na música é importante haver quem nos mostre coisas, para não descobrirmos apenas o que é novo, o que nos é contemporâneo, mas também para descobrir o que está para trás disso, porque as coisas encadeiam-se umas nas outras. Na poesia acedi aos livros do Luís, e do que ele comprava. Ruy Belo, Herberto Helder, António Ramos Rosa, e todo um leque de poetas que têm qualidade. Não apenas os clássicos, como se calhar acontece em muitas casas. Ia lendo uma poesia mais alternativa e que me apaixonava.
Não gosto da poesia contida, espartilhada, por regras demasiadamente técnicas. E sou adepto da poesia livre. O verso não tem que ser livre ou preso. Pode ser um verso clássico, mas o que está lá dentro ser absolutamente inovador.
Durante 12 anos fez jornalismo. Isso educou o seu modo de escrever?
Não, não me educou o modo de escrever. Tive a felicidade de ter estado n' "O Primeiro de Janeiro", com um leque de grandes jornalistas. O que me levou a sair do jornalismo foram questões de precariedade, que se sente em todo o país. O jornalismo está refém de poderes económicos. Portugal é um país muito pequeno, somos dez milhões, e as empresas jornalísticas são na sua maioria detidas por grandes grupos económicos. Quando não há um grupo económico que tenha interesses por detrás, existe sempre aquela coisa dos anunciantes: não se pode ferir a suscetibilidade de uma empresa ou de um anunciante, porque poderão ter relações comerciais ou pessoais com outra empresa. Há uma rede de influências que se exerce sobre o jornalismo. E quando comecei a notar isto, que o trabalho que se fazia já não era independente de agências, de influências, francamente comecei depois a trabalhar em publicidade. A publicidade, sendo uma escrita em prol de um interesse comercial, é mais honesta.
E de que maneira é que depois essa vertente da publicidade e locução influência a sua escrita?
Não influencia. Consigo ter vários compartimentos estanques na minha vida. Além disso, também faço um programa de televisão sobre música alternativa, há cinco anos, no Porto Canal, o "Radioativo", e a música sim, é uma grande influência na minha vida, mais até que a leitura de poesia, que é mais o que eu leio. Leio pouquíssimos romances. Todas as semanas faço uma pesquisa musical que demora seis, sete a oito horas, de música nova, e vou descobrindo uma lírica que está também associada à música. E isso sem sair de um computador, consegue abrir-me horizontes para a escrita e para o pensamento.
Houve uma professora de língua portuguesa que influenciou a sua paixão pela escrita. De um modo geral, acha que os professores estimulam devidamente os jovens estudantes para a literatura?
Depende dos professores. Hoje em dia já houve algumas alterações nos programas educativos na poesia que se ensina. Já não é só Fernando Pessoa ou Camões, ou Teixeira de Pascoaes, que é um grande poeta, diga-se. Hoje já se fala de Jorge Sousa Braga, ou de Ruy Belo. Já há um leque mais alargado. Mesmo assim, ainda não é nem representativo nem suficientemente aliciante, penso eu, para os miúdos.
O que pode ser feito para aumentar, nesse sentido, o estímulo nos jovens?
Há tempos, na Rússia, houve dois tipos, em que um matou o outro à facada, porque um gostava mais de poesia e o outro mais de prosa. Já não me lembro ao certo quem ganhou a contenda, e penso que foi o de prosa que morreu, e espero que tenha sido, porque viva a poesia (risos)! Somos um país de enormes poetas. Leio poesia de outros países, de outras nacionalidades, e há belíssimos poetas, mas se tivéssemos que pegar em tudo e pôr na balança, diria que Portugal é um país de enormes poetas. Nesse sentido, para estimular mais os jovens, devia haver mais poesia nos programas educativos, ponto número um. Depois devia haver algo que obrigasse os professores a irem à procura de poesia, ou seja, não estar tudo no programa. Haver um capítulo que estivesse à descoberta dos próprios professores...
Um pouco à imagem do que acontece no filme "O Clube dos Poetas Mortos", de Peter Weir, por exemplo?
Sim, sim. Não há uma cidade neste país onde não haja dois ou três poetas. E não vejo porque é que a escola não deve estar aberta à participação destes poetas, ou à participação de pessoas que gostam de dizer poesia. E, sobretudo, não vejo porque é que a escola não pode estar aberta a uma nova poesia capaz de servir como alavanca para os miúdos irem à descoberta de um novo tipo de coisas. E eu vou te dar um exemplo. Isto pode parecer um pouco solipsista, mas em 2013 tive um experiência no Festival de Paredes de Coura, onde fui lançar um livro de poesia política, o "Cavalo de Troika", e estávamos a fazer umas leituras no palco de Jazz na relva, com o Rui Spranger e o Isaque Ferreira a apresentar o livro. Tínhamos lá os livros para vender no final, e eu pensava "bem, quem vai comprar isto é o pessoal de trinta anos, ou assim", porque aquilo é um livro de poesia interventiva, é um livro que apela bastante à ação das pessoas. Muito mordaz na crítica. E o que aconteceu no final dos 30 minutos de leitura, é que tínhamos uma fila de miúdos de 18 a 21 anos, para comprar o livro. Vendi trinta e tal livros nesse lançamento a esses miúdos. E estamos a falar de poesia, e estamos a falar de miúdos, que se calhar ainda não têm o poder de compra de pessoas mais velhas, e que foram ali gastar oito euros, que lhes davam para beber quatro cervejas, num livro de poesia...
Quer dizer que há esperança que a poesia permaneça viva?
Sim. Claro que há esperança. Há muitas vicissitudes que estão a tolher a educação em Portugal, a começar também pela organização sociológica do trabalho, que tira aos pais tempo de qualidade para eles próprios se cultivarem e estimularem os filhos. Cada vez as pessoas têm mais dificuldades no trabalho, ganham menos, trabalham mais horas e têm menos tempo. É natural que em casa depois é mais fácil deixar os miúdos livres, do que perder tempo a ler-lhes um poema. No entanto, a minha geração, que tem agora 40 e tal anos, foi educada com poesia e teve acesso a grandes escritores. Em muita gente, a poesia ainda é uma semente que está lá dentro. Como todas as sementes, se não for regada, acaba por tornar-se num político.
Já que estamos a falar de idades e gerações, a Virginia Woolf escreveu na sua "Carta a um jovem poeta" que "nunca se deve publicar nada antes dos 30 anos". Só publicou pela primeira vez um livro com 41 anos, em 2012. Acha que há uma idade certa para publicar?
A Virginia Woolf tem esse livro? Desconhecia (risos). Conheço o "Cartas a um jovem poeta" do Rilke, portanto, já aprendi alguma coisa nesta entrevista (risos). Não sei se há uma idade certa. Lembro-me uma vez de uma entrevista que me fez o Valter Hugo Mãe, em que ele me dizia que os dois primeiros livros de poesia dele eram muito maus. Acho que é um bocadinho como o penteado que usávamos há anos e não nos revemos nesse penteado, e dizemos "que parolo, que aspeto mais parvo que eu tinha" (risos), mas a verdade é que nessa época fez sentido. Se para algumas pessoas, se elas sentem esse ímpeto de publicar, e se tiverem essa oportunidade, por que não fazê-lo? Não há uma idade certa para rigorosamente nada, tirando para beber álcool, ou para ter sexo (risos).
É mais automático na criação ou revê constantemente o que escreve?
É raríssimo um texto que eu escrevi, não ter sido depois reanalisado, depurado, até porque a escrita tem dois componentes: o conteúdo e a técnica. Muitas vezes o conteúdo molda a própria forma. Tento ser cuidadoso com a forma, sem fazer disso um ponto de honra. Acho que é importante fazermos um texto, que é suposto ser um poema, e depois limar-lhe as arestas, ver onde é que há algo que possa ser dito e trabalhado de modo diferente.
É um leitor assíduo de poesia nas noites do "Pinguim Café", no Porto. Quando cria um poema, escreve em voz alta, ou seja, escreve a pensar no caráter oral?
Faço uma divisão. O "Cavalo de Troika", por exemplo, foi um livro escrito para ser dito, porque é um livro de intervenção e faz todo o sentido que esteja preparado para a oralidade. Mesmo assim, a poesia é um exercício essencialmente intimista. Tenho registos diferentes de poesia: um mais humorístico e outro mais intimista. O primeiro sinto-me à vontade em partilhar em voz alta. O segundo, não tanto. .
Como tem sido recebido o projeto "Rua da Poesia" (programa de televisão online onde leva poemas para o contexto das cidades)?
É ainda muito embrionário, porque nem eu nem o Hugo Valter Moutinho [colaborador no programa] vamos tendo muito tempo para pegar nele. Quando nós vamos para a rua e levamos um poema, as pessoas recebem-nos bem.
Sempre gostou de experimentar atividades e profissões novas. Horace Enghdal, jurado do Nobel da Literatura defende que a "profissionalização do ofício" da escrita, "as bolsas e os apoios financeiros" estão a destruir a literatura ocidental, que "antigamente, os escritores trabalhavam como taxistas, funcionários, secretários ou empregados de balcão" e que agora são todos muito académicos. O que pensa a esse respeito?
O senhor jurado tem razão. O nosso José Saramago teve muitas profissões. O Herberto Helder trabalhou nas bibliotecas itinerantes, por exemplo. Agora, como em tudo, não gostaria de generalizar. Poderá haver poetas e romancistas que sejam académicos ou que trabalhem como professores de literatura. Agora, o que não podemos é isolar as pessoas da vida, do contacto humano. Um escritor não pode estar dentro de quatro paredes a trabalhar das nove às sete da tarde a escrever.
"Por causa das veias é que há pessoas tão cheias", lê-se num dos poemas do seu livro "Aprendiz de dourado". É por sermos mortais que há tanta beleza na vida?
O que nos dá a dimensão do sofrimento e da felicidade é a nossa mortalidade. Nós, os portugueses, falamos muito de saudade, que para mim é a dor da perda daquilo que já se teve, e que se quer voltar a ter e já não se pode ter mais. É o sangue, é aquilo que corre dentro de nós, que está de uma forma imagética nas veias, que nos torna belos e sensíveis.
E em relação ao novo livro de poesia, "Canibalírico", apresentado no Correntes d'Escritas deste ano, que diferenças e semelhanças podem ser encontradas entre ele o "Aprendiz de Dourado"?
O "Canibalírico" é um livro mais 'dark', mais preto, mais intimista e que fala muito da minha dimensão de solidão, e da minha loucura, de desilusões. Mais do que de desilusões, fala de ilusões perdidas. É um livro bastante venéreo, digamos assim. Não sei muito bem ainda defini-lo. É um livro mais pessoal. Enquanto o "Aprendiz de Dourado" é uma espécie de compilação de 25 anos de poesia. O meu mais antigo poema que está aí publicado, "só eu sei que os teus olhos não choram/ são barcos/ navegam em lágrimas", esse poema foi escrito quando tinha 15 anos. Está aí, não porque tenha uma validade poética por aí além. É simples. Eu acho-o bonito. É um marco, digamos assim, e por isso ficou no livro. O nome da coleção onde foi publicado o "Aprendiz de Dourado" chama-se "Solidão sincronizada". É uma coleção da Texto Sentido, editora onde colaboro e que é orientada pelo Eduardo Leal. O título dessa coleção vem do facto de toda a escrita ser um ato de solidão. E nós temos de tentar sincronizar a nossa solidão com os outros. A Texto Sentido pode continuar a publicar poetas, e estamos abertos sempre ao contacto com novos autores.
Maria Teresa Horta defende que "os concursos literários não são o mais importante para um escritor", mas sim "criar, independentemente de tudo". Que importância dá aos concursos?
Nenhuma ou muito pouca. Não vou dizer que não fiquei extremamente lisonjeado, por um conjunto de jurados muito válido ter achado piada ao meu livro, o suficiente para me nomear. Isto é interessante, quando dentro do prémio foram também nomeados grandes nomes da literatura contemporânea. Ganhar um prémio literário não me muda em nada, nem me move em nada para escrever mais. Simplesmente teria uma consequência financeira. Teria uma consequência provável nas vendas dos livros, mas eu gosto do percurso que tenho feito. Desde 2012, em três anos que vejo que vai havendo um efeito de bola de neve. O que sinto é que consigo tocar em alguém que depois mostra a outra pessoa. Há um efeito de boca em boca, que é ótimo para nos tirar a respiração. O efeito de proximidade com a poesia é muito mais interessante do que o impacto de um prémio literário.
Começámos com uma pergunta sobre a prática da poesia. E as palavras, Renato, o que são as palavras?
As palavras, nós precisamos delas como do pão para a boca. Precisamos delas para nos exprimir, não é? Há aquele poema do Manuel Alegre: "Com as mãos se faz a paz/ se faz a terra/ com as mãos/ tudo se faz e se desfaz". É um bocadinho a mesma coisa com as palavras. Precisamos das palavras para tudo. Precisamos das palavras para dizer que temos fome, quando somos crianças. E depois precisamos das palavras, à medida que os nossos sentimentos se vão intensificando e complexificando, precisamos sempre cada vez mais de palavras, para os simplificar.
E no futuro, o que os leitores podem esperar da sua parte?
Muita poesia. Depois do "Canibalírico", vou lançar também um outro livro a oito mãos, com o Pedro Teixeira Neves, o João Rios e o Rui Tinoco. É também uma obra de poesia política e chama-se "Causas da decadência de um povo no seu lar". Há também uma coleção que fazemos na Texto Sentido, a "Quase Dito", em que temos convidado poetas para nos entregar dez poemas, e há um ilustrador que faz uma ilustração, e editamos uns livretes com esses poemas e ilustrações. À partida, este ano vai ser muito profícuo para mim.
"Pietà"
segue no metro esta única mulher
com variz desde a trindade
ao senhor de matosinhos
olhar de mel atravessa
as colmeias dos bairros sociais
o sorriso pára em todas as estações
e rostos órfãos a entrar e sair
da vida expropriada de prioridade
nos bancos junto à porta
como se viajasse com o bilhete
de ser mãe inteira do mundo
(in "Canibalírico")
